Matinée, a cortina vermelha e o tempo perdido
Muitos anos depois, Preto toma coragem e começa a retirar as pesadas e grossas cortinas vermelhas. A moça espera no carro. As mãos tremem, o coração dispara. Era como estar fazendo algo muito errado. E está. De algum lugar de suas memórias, imagina-se roubando a túnica inconsútil de Cristo. Sacrilégio. Pedro, não o Porteiro Celestial, mas o do cinema, deu-lhe cópia das chaves das grades sanfonadas, mas não era para aquilo. Era para abrir o cinema se ele estivesse viajando ou doente. “Mas é só por algumas horas”, um anjo amigo lhe cochicha. Antes de amanhecer, as cortinas estarão ali, no mesmo lugar, separando mundos. Um, o da realidade, dos heróis pequenos e vidas breves; o outro, o do sonho, das estrelas e dos astros do cinema.
Vem alguém pela rua. Pensa em desistir. Segura a respiração. O ruído das argolas deslizando pelo suporte de metal parece que vai acordar toda Pitangui. Não é nada. Assoviando uma melodia tristíssima, como uma flauta que sopra do fundo de sua alma, passa o Ladinho. O coração escapa pela boca. Não foi desta vez. Preto segue o trabalho, até as cortinas caírem no chão: vão servir de colchão improvisado de uma noite de amor casual. Hormônios da mocidade!
Mas isso foi muitos anos depois. Agora, de calças curtas, ele está na fila pra comprar o ingresso pra ver Roy Rogers e a namorada, Dale Evans, no filme principal. O cavalo de Roy Rogers é o Trigger, branco como a coalhada. Depois do filme, vem sempre um seriado. Preto gosta de seguir “Viagem ao Fundo do Mar”, cada episódio mais emocionante quanto mais perto do final. Já estão anunciando o próximo, “O Homem Foguete”. “Esse, não vou perder, um dia vou ser astronauta”. O Homem Foguete voa mais alto que os urubus e não precisa de asas. Tem um foguete nas costas, que o leva aonde quer. E seu capacete o protege do vento e do ar rarefeito.
A chuva vem e vai a cada momento. A tarde está quente e úmida, a meninada toda está suando. “Ó o picolé... picolé... ó o pirulito... pirulito... pipoca...”, cantam os vendedores. Alguns meninos saem da marquise, quando começa a chover de novo, pra se refrescarem. Tem um menino na sua frente na fila, que, dizem, não toma banho, não usa meia e anda de sapato de plástico. Preto dá razão ao diz-que-diz, o menino está fedendo, tem mau-hálito e chulé. Será que foi por isso que os meninos ricos do centro o esfregaram num sauveiro, ali mesmo no piso mais baixo do Jardim, depois do horário de aula? O menino chorou, esperneou, mas ninguém teve piedade. As formigas se assanharam e se espalharam por seu corpo inteiro, ele ficou todo empolado por quase um mês. Tempos depois, se mudou de Pitangui e nunca mais voltou.
Comprado o ingresso, Preto vai ao Jardim para ver o que acontece. Falta meia hora pra começar a sessão. O cinema toca música de Ray Connif. É uma e meia da tarde, começam a ajuntar-se os meninos, alguns perto do Coreto, outros na porta do cinema. Mais para lá, a Praça do Jardim está cheia, a chuva intermitente não atrapalha de todo as brincadeiras. As meninas são poucas e não ficam muito perto. Brincam no Jardim. Jogam queimada, passam anel. Acham que os meninos são uns chatos, fingem não vê-los. De longe, eles jogam piadinhas pro lado delas, mas só os que usam calças compridas se aventuram a chegar mais perto e puxar conversa. Rohr Carapina, de cabelo comprido e calça boca-de-sino, é um deles. Caramujo quer também, mas é branquelo, está sempre gripado, o nariz escorrendo, limpa com as costas das mãos a todo instante e se aproxima das meninas. “Alemão cascudo, carrapato barrigudo”, as meninas o insultam e fogem, mas ele vai atrás e se vinga, espirrando água de mija-gato nas blusas delas, quanto mais branquinha mais manchada. Caramujo sabe que vão levar xingatório das mães. Alguns anos depois, quando acabar o tempo das matinées, tudo será diferente. Bem diferente.
Alguns meninos jogam finca e bola de gude no chão do Jardim. No jogo da bola de gude, o melhor é Dindico Albino, que sabe fazer papão na terra arenosa com o calcanhar. Ele crica de longe, tem a melhor mira da cidade. Pouco a pouco, a maioria se junta debaixo da marquise do cinema, para trocar revistas e bater figurinhas, jogo a que chamam “tapão”. Dindico Albino é preto, mas tem esse apelido, ninguém sabe por quê. Enquanto vagueia por ali, escuta que, de noite, depois da missa, no adro da Matriz do Pilar, já tem briga marcada da turma do Quebra com a turma do Alto. Não dá pra perder.
Mundin Bonerje e RubenZ são os maiorais na troca de revistas, a principal atividade ligada à matinée. De manhã já se preparam, escolhem as revistas que vão levar pra trocar e as que só são de exibir. Sabem que as melhores são as de capa lisa, que todo mundo ambiciona: Flash Gordon, Rock Lane, Rex Allen, Reis do Faroeste e Bill Elliot. Ninguém passa manta neles. RubenZ, quando apanha uma revista, autografa logo, a caneta, com orgulho e letra grande no início e no fim do seu nome: “RubenZ”. Ele usa um topete que nem o do Elvis Presley, sinal de que já tem namorada, sinal de que já pode assistir à soirée de sábado. A que tem duas sessões, às sete e às nove da noite.
Júlio Bizarré combinou de levar revista de cifras de violão pra trocar com Rohr Carapina hoje. Os dois já tocam, aprendendo sem professor, só com cifras de revistas. Isso dá pra arranjar muita namorada, ou broto, como dizem os mais velhos. Bizarré, antes da matinée, passou no Bar Elite e comprou um picolé. De manhã, nadou no Bracinho, chupou jabuticaba e mamou um guaraná quente pela tampinha furada com prego. É pra durar mais tempo, sem tampinha acaba depressa, no copo não tem graça e guaraná gelado só tem no bar. E é muito mais caro. Aprendeu com um dos meninos do Velu, que compra na caderneta, na venda do Tisnado ou no Vinícius.
Carapina, dizem, já tem namorada. Por isso vem de calça comprida na matinée e não fica vadiando por muito tempo depois da sessão. É louro, usa cabelos longos, calças boca-de-sino listradas e toca violão. Ninguém mexe com ele, porque é da turma do Alto, protegido do Mestre Zaía, o bamba da capoeira. Carapina tem uma coleção completinha de Antar, herói copiado do Tarzan, coleção que todos querem. Costuma trazer as revistas enroladas no bolso traseiro da calça. Mas é só pra fazer vontade nos outros, porque não dispõe de nenhuma. – “É coleção”, diz e não encomprida conversa.
Nando Tavares, Salzinho, Paulo Zé dos Santos e um monte de meninos trazem revista pra trocar com ele, mas é bobagem, ele não dispõe mesmo. Fora Carapina, só Bonerje e RubenZ têm revistas melhores. Por uns tempos, Milton do Sô Neném também ficou famoso porque passou manta no Bola do Zé Vovô. Apanhou revistas de 1942, que nem eram em quadrinhos ainda, em troca de alguns Mandrake, Príncipe Valente, Coiote e Fantasma, revistas pungas, de capa caroquenta, que ninguém dá valor. Um sabasquá, esse Bola! As revistas eram da coleção do tio Zé Maria e estavam guardadas nuns caixotes de madeira, debaixo da cama. Bola fuçou sem permissão. Quando o tio voltar do Rio de Janeiro, como vai explicar o sumiço das revistas? Nem comprando vai achar!
Preto já fez a inspeção costumeira pelo Jardim, já viu as meninas, já é hora de entrar no cinema, são quase duas horas. Antes de ultrapassar as pesadas cortinas vermelhas, vai ver de novo os cartazes na antessala, um ritual. Faz uma viagem pelos reclames coloridos: “Revanche Selvagem”, com Burt Lancaster, Shelley Winters, Telly Savalas e Ossie Davis; “Sangue e Areia”, com Tyrone Power, Rita Hayworth, Anthony Quinn e Linda Darnell; “Nefertiti, A Rainha do Egito”, com Jeanne Crain, Vincent Price e Liana Orfei, e outro e outro e outro... Quase tudo repetido, quase não mudam os cartazes, mas é bom ver mesmo assim. Hora de sonhar com as moças bonitas, pensar em exterminar os bandidos mal-encarados, ser um daqueles heróis invencíveis e planejar ver alguns dos filmes anunciados, se é que vêm pra Pitangui. Na lista de Preto, “Tarzan e a Mulher Leopardo”, com John Weissmüller, e “Ben Hur”, com Charlton Heston. Faltam cinco pras duas, hora de entrar.
Entrega o ingresso, o porteiro o recolhe e puxa as pesadas cortinas pra lhe dar passagem. Lá dentro, ainda estão acesas as luzes coloridas das laterais. Entrar na hora do jornal não é bom, já está escuro, os olhos sentem o choque da escuridão. Paulinho Gordo sentou no colo de uma moça uma vez, dizem que foi por querer, mas bem que pode ter sido por acaso. E se você quer subir pro puleiro, melhor antes de apagarem as luzes laterais, pra não tropeçar nos degraus da escada em caracol.
Dindico prefere entrar na escuridão, já na hora do Canal 100. Os olhos demoram um pouco a se acostumar, mas o Vê, o que vende pirulito e pipoca, acende a lanterninha e o ajuda a encontrar o caminho da cadeira. Dindico acha muito divertido e aproveita pra cochichar no ouvido do Vê pra saber onde se sentou a Aninha, uma das poucas meninas que acompanha seriado. Dizem que é do boró encerado.
O Vê se chama Vicente, o apelido não é só pela inicial do nome, é também porque não precisa da luz pra enxergar e se movimentar no escuro, ele sabe de cor até as cadeiras que estão quebradas. Dizem que é ele, também, que entrega pro gerente do cinema os meninos que batem os assentos nos encostos das cadeiras, tudo madeira pura, pra fazer zoeira quando a fita arrebenta. Quando a luz acende, todo mundo fica santinho, mas o Vê já viu no escuro, já sabe quem foi. Lá em cima, na sala de projeção, emendam a fita, a luz se apaga, recomeça o filme. Mas se acontece de a fita arrebentar de novo, a bagunça se repete.
Lá de cima, no escuro, dá pra ficar mexendo com os outros. O melhor é jogar pipoca na cabeça da turma e esconder a mão. Agora, vão apagar as luzes coloridas das laterais. Começam a tocar “Petite Fleur”. Um momento de concentração, até a hora de espantar os urubus da propaganda ou o leão furioso. Lá está a turma encapetada, todos se encontram no puleiro sem precisar combinar. Dindico faz coro com Carapina, Bizarré, Caramujo e Paulinho Gordo, afinadinhos, sem ensaio: chô, chô, chô, passa, passa, passa... Quando começam a aparecer os letreiros do filme principal, todo mundo fica quieto. O mundo ficou lá fora, o sonho começou.