808-A NOITE DOS CIGANOS - Da Série "Vovó Bia"

Ao entardecer as sombras se alongavam, o sol lançava raios dourados que faziam o mundo parecer de ouro. As serras ensombreavam os vales com os perfis de seus cumes e para as bandas do nascente e o céu tomava tonalidades lilases.

A estrada que passava pela Fazenda Palmital era naquela tarde uma faixa dourada, serpeando os campos e pastos. As tarefas da fazenda terminadas, descia sobre o mundo um quase silêncio, quebrado aqui e ali pelos grilos e pelo coaxar das rãs à beira de algum poço.

Os moradores da casa-grande da fazenda sentavam-se, todas as tardes após o jantar, que era servido pelas cinco horas, e usufruíam daqueles momentos de sossego e paz, nas cadeiras do alto alpendre, de onde podiam estender a vista bem para longe.

Vovô Aníbal cochilava, vovó Bia fazia crochê, tio Alpineu, apoiado no corrimão, meio sentado, meio encostado, limpava as cunhas com a lâmina do canivete. Tia Elvira simplesmente descansava. Mulher ativa, tinha seus momentos de repouso, que apreciava com gosto. Dorinha, Tavinho e Carlinhos, filhos de Tia Elvira e Tio Alpineu, não ficavam quietos, brincavam e puxavam conversa com todos.

Eis que surgiu numa curva da estrada um grupo de viajantes: carroças, animais de carga e pessoas, um grupo que, visto à distância não dava para perceber do que se tratava. Todos viram as pequenas figuras a distância, avançando lentamente, em aparente cadência.

Tio Alpineu foi quem primeiro viu, com clareza, o grupo e disse:

— Ciganos. Vão pra cidade. Tomara que passem depressa.

As crianças pararam de brincar e foram para a escada, a verem a aproximação da caravana. A estrada passava bem defronte à casa-grande e à medida que os ciganos se aproximavam, podia-se distinguir os detalhes do grupo.

À frente do cortejo vinha uma grande carroça, puxada por dois cavalos e em cuja boléia estava um velho usava um chapéu desabado que lhe escondia as feições. Uma carroça menor, dirigida por um jovem, era arrastada com dificuldade por uma besta. Crianças sujinhas, quatro ou cinco, seguiam a caravana e quase não aguentando acompanhar a marcha. Dois rapazinhos puxavam três mulas, com lombos arqueados por carga pesada. As mulheres e crianças caminhavam atrás das carroças e por entre as mulas de carga. Duas ciganas carregavam crianças nos braços. Todos estavam cobertos do pó da estrada e pareciam exaustos.

— Coitados – disse Tia Elvira. — Devem estar cansados.

Sem mais dizer, desceu depressa a escada da casa e se aproximou dos ciganos, que agora se encontravam realmente defronte à porteira de entrada da fazenda.

A caravana parou quando ela gritou, sem se dirigir a ninguém em especial:

— Boas tardes, gente!

— ‘Tardes, dona! - responderam

— Pra onde vocês vão?

— Pra cidade. Queremos chegar na cidade antes da noite fechar.

— Parece que estão cansados?

— É, tamos caminhando desde cedinho.

— E as crianças, coitadinhas, não aguentam nem seguir as carroças.

— Tamos muito carregados. Não dá pra elas irem nas carroças.

Tia Elvira era muito prestimosa. Vendo aquela situação, condoeu-se de todos.

E prosseguiu no interrogatório:

— Vocês já comeram alguma coisa hoje?

— É, a gente arranchou faz uma seis horas, fizemos um almocinho, sim.

— Mas e a janta?

— Vai ter de esperar até a gente chegar na cidade e acampar.

Falando com as crianças, perguntou:

— Vocês estão com fome?

— Viche, dona! - respondeu uma garota de seus oito ou dez anos.

— Então parem, vou mandar fazer uma sopa pra vocês.

O cigano mais velho, bigode e cavanhaque brancos, perguntou:

— É muita bondade da senhora, dona. A gente pode arranchar debaixo daquela paineira ali na frente?

— Pode sim.

Tia Elvira subiu as escadas depressa. No alpendre tio Alpineu fechou o canivete com o qual esgravatara as unhas, dizendo:

— Que é isso, Elvira, mandando os ciganos acamparem em frente à fazenda?

No seu tom, mais do que uma pergunta, estava toda a carga de preconceito que havia contra os ciganos, os homens tidos como ladrões de cavalo e as mulheres como perigosas ladras e mentirosas leitoras de mãos.

— Ara, Alpineu, as crianças tão com fome.

Vovô Anibal tinha acordado do seu cochilo e, completamente alerta, disse:

— É muita gente pra dar de comer.

Vovó Bia interveio em favor dos ciganos:

— São gente boa, coitados. Estão com fome. E onde come um, comem cem. Vamos, Elvira, eu te ajudo na cozinha.

E lá se foram elas casa adentro para o preparo da refeição. Foram ajudadas pelas duas empregadas, que já haviam lavado as panelas, a louça e os talheres do jantar.

Em dois tempos, um grande caldeirão de sopa de fubá, temperada com pedaços de linguiça, couve, batatas e mandioca – tudo o que havia à mão, àquela hora — fervia sobre o fogão de lenha.

Quando a sopa ficou pronta as quatro mulheres carregaram o caldeirão até o acampamento dos ciganos. Tio Alpineu, mais para espiar de perto os ciganos, levou dois embornais com pães. Tavinho, Dorinha e Carlinhos correram entre as carroças e os adultos, doidos para conhecerem os ciganos, cuja fama era muito ruim.Tinham medo, mas a curiosidade era maior.

Logo apareceram pratos e colheres, da tralha dos ciganos. Se serviram sem cerimônia.

Tia Elvira e vovó Bia ficaram por ali, vendo os ciganos comerem com avidez. Num toma-lá-dá-cá, os pratos estavam vazios, os pães devorados e o grande caldeirão raspado no fundo.

Tio Alpineu, ao ver como estavam cansados, também se condoeu da situação do grupo, e disse:

— Se quiserem podem armar suas barracas por aí mesmo. Amanhã cedo, vocês acabam de chegar à cidade. –

— Falta muito, meu gajão? – Perguntou o cigano de bigode e cavanhaque branco.

— Légua e pouco.

— Então a gente fica, sim. Muito obrigado, gajão.

Quando a família subiu as escadas, os meninos perguntando sobre os ciganos atropelavam a conversa e nem ouviram quando tio Alpineu disse à esposa:

— Pelo sim, pelo não, vou mandar o Diogão passar a noite de vigia, de olho nos ciganos.

As crianças foram dormir alvoroçadas.

— Amanhã vou pedir pra vovó Bia contar pra gente uma história de ciganos...

Na manhã seguinte, quando a madrugada ia desaparecendo no lusco-fusco do amanhecer, a claridade era apenas uma fímbria no horizonte, antes de a fazenda despertar, os ciganos já tinham deixado o local.

Tio Alpineu encontrou Diogão cochilando numa cadeira do alpendre, onde passara a noite de atalaia.

— Então, Diogão, alguma novidade?

— Não, seu Alpineu, os ciganos não fizeram nenhum movimento de noite. Tudo calmo. Saíram de madrugadinha.

Tio Alpineu olhou para a paineira. A pequena clareira, antes ocupada pelos ciganos, estava limpa como se tivesse sido varrida.

A Seguir: Onde come um, comem cem.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 29 de outubro de 2013

Conto # 808 da série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/05/2015
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