A coisa
Ele saiu de casa e ela estava ali, a esperá-lo na calçada, como sempre. Olhou-a de lado, disfarçadamente, sem fitar nos olhos esbugalhados que aquela coisa tinha e que o acompanhavam e incomodavam havia semanas.
Virou à direita e caminhou por cerca de duas quadras. Parou, olhou para trás e pronto - lá estava ela, também parada, como um cachorrinho de olhos grandes a implorar pelo amor do dono. Mas não era bem assim que ele a sentia: aquela coisa o incomodava e ameaçava, com sua aparente carência, como um assassino de aluguel perseguindo sua vítima. Porém não atacava, não avançava, sequer chegava perto. Mantinha sempre a mesma distância dele, coisa de dez passos ou um pouco mais; se ele parava ela parava também, se ele seguia ela continuava em seu passo silencioso de gato e na mesma cadência, se ele entrava em algum lugar ela esperava do lado de fora, na certeza absoluta de que ele iria sair - e então, obstinadamente, continuava a segui-lo.
Andou por mais um quilômetro e chegou ao escritório onde trabalhava. Já sabia que a coisa iria ficar parada na calçada, esperando-o acabar o expediente, para depois acompanha-lo até a casa. E lá, ao lado da entrada, ela ficaria, muda e estática, com os olhos grandes fixos na janela, esperando pelas espiadelas que ele fatalmente dava, quase de hora em hora. Inclusive durante a noite.
Ele não contou esse fato a ninguém, por medo de que o julgassem insano. Não saberia nem mesmo descrever a coisa: a cada dia ela mudava de aparência, porte, cor. Um dia era um bicho peludo e preto, noutros tinha uma grande cabeça pelada, noutros ainda era uma barriga de certa forma simpática, porém de onde várias mãos, na ponta de braços curtos e agitados, saíam, mostrando todos os dedos indicadores apontados para ele. Mas os olhos eram sempre os mesmos: grandes, arredondados, com as pupilas muito negras e brilhantes seriamente fixas nele, sem nunca piscar.
Naquele dia teve uma ideia: sairia pelos fundos, uma porta auxiliar que havia no edifício do escritório e por onde se movimentavam os prestadores de serviços, o pessoal da limpeza e os coletores de resíduos. Não era permitida a passagem de funcionários do escritório, mas ele teria que dar um jeito.
Esperou até que todos os seus colegas se fossem e então encaminhou-se para a tal porta dos fundos. Estava trancada, mas não foi difícil achar a chave, num armário próximo à copa. No dia seguinte, pensou, chegaria mais cedo e devolveria a chave. Havia anoitecido e estava escuro. Abriu a porta, saiu, trancou-a e, antes que pudesse respirar, notou, parada ao lado, a coisa – desta vez algo como um rato cinzento, grande e peludo, de orelhas compridas e dobradas, com tristonhos, enormes e incriminadores olhos negros.
Depois desse dia, tomou uma decisão. Desistiu de lutar contra aquela coisa. Ao contrário, a partir de então passou a atrai-la com petiscos irrecusáveis: raivas reprimidas, excessiva preocupação com a opinião dos outros, baixa autoestima, sentimento de rejeição... Aos poucos, a coisa começou a acompanha-lo cada vez mais de perto e ele não se incomodava mais. Pelo contrário, abriu a porta de sua casa e ela entrou, passando a dormir ao lado de sua cama.
Alguns meses depois, já afetivamente envolvido, resolveu dar um nome ao seu novo animalzinho de estimação. Chamou-a de Culpa e todos os dias afagava sua cabeça, agradecendo-lhe por lembra-lo constantemente de sua condição de ser inferior, inútil e indigno de qualquer tipo de contentamento.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Perseguição
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