805-REI POR UM DIA - Autobiográfico, folclore.
Chegava o fim de ano com tudo de bom. O fim das aulas, a expectativa dos presentes de Natal, dos presépios nas casas dos vizinhos e de muitos, muitos dias de vadiagem, de nada que fazer.
Em nossa cidade havia algo de especial, que só acontecia na última semana do ano, entre os dias 26 e 30 de dezembro: as congadas. É claro que havia congadas e congadeiros em outras localidades, mas eram em datas diferentes, algumas em maio, outras em agosto. Congadeiros de fim de ano só em nossa cidade.
A última semana do ano era uma festa só. Cinco dias de folia. Os congadeiros ensaiavam desde o final de julho, nas noites de quartas e sábados. Embora o tã-tã-tãtã-tãtã fosse o mesmo de todos os anos, os ensaios faziam parte da tradição.
No dia 8 de dezembro havia a solenidade de hasteamento das bandeiras: quadros com retratos em tecido, dos cinco santos da devoção dos congadeiros eram levantados nas pontas de longas varas de madeira ou de bambu e fincadas na praça da matriz, ao lado da igreja. Eram eles São Domingos, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e São Jerônimo. Os mastros ficariam ali durante todo o mês de dezembro e eram retirados no dia seis de janeiro, dia dos Santos Reis Magos.
A organização dos participantes em ternos era única: cinco batedores de tambores na frente, seguidos por duas alas laterais, acompanhando os tambores da direita e da esquerda, constituído de homens, jovens e crianças, nesta sequência. Os participantes das filas laterais tocavam sanfonas, tamborins, instrumentos de corda – violas, cavaquinhos – e os meninos levavam reco-reco, pandeiros e outros instrumentos do tipo. Os tambores davam o andamento, e os homens da frente entoavam os cantos.
O grupo de congadeiros, o terno, caminhava no ritmo dos tambores. Só os homens da frente dançavam, isto é, davam passos de uma dança primitiva, enquanto cantavam. As filas laterais respondiam em coro, que ia num decrescendo até se extinguir nas vozes muito altas, esganiçadas, dos meninos do final das filas
No centro de cada terno ia o porta-bandeira (homem ou mulher) levando um quadro de aproximadamente 80 centímetros de lado, com a estampa do santo do dia. Quadro enfeitado com fitas e flores de papel crepom, carregado com todo o respeito.
Cada terno se esmerava nos trajes, no uniforme: calças brancas compridas (até mesmo para os garotinhos), com listas laterais, nas cores vermelha, azul, amarela, ou combinadas. Camisas floridas ou de vistosos padrões de xadrez, chapéu de palha enfeitados com fitas coloridas nas abas e espelhinhos colados nas copas. Botinas ou sapatos limpos. Na cintura, as correias e guaiacas também eram adornadas com fitas coloridas.
Era bonito de se ver: quando dançavam ou balançavam os corpos, as fitas esvoaçavam, os espelhinhos faiscavam, e o conjunto colorido, seguindo pelo meio da rua, era bonito de se ver, sim.
Os moçambiqueiros eram outro tipo: ternos menores, com um grande tambor á frente, em um tã-tã-tã contínuo, uníssono. Geralmente era só de negros: quatro homens à frente, dois de cada lado do tambor, portando bastões de fitas coloridas. As roupas eram mais modestas: usavam uma saia sobre as calças, de tecido fino e colorido. Nas cabeças, lenços enrolados, fazendo um pequeno turbante baixo. Nas canelas, cordões com latinhas fechadas, dentro das quais haviam sido colocadas pedrinhas. De tal forma que, ao dançarem ou mesmo ao caminharem, faziam um barulhinho de guizos. As danças eram mais simples, apenas passos especiais ao som do único tambor.
Isto era folclore. E havia a parte religiosa.
Cada dia era dedicado a um santo da devoção dos congadeiros cujas figuras já estavam hasteadas nos mastros.
Os ternos só saiam à tarde. Geralmente ensolaradas e quentes, mas de vez em quando, com passageiras pancadas de chuva, que em nada tirava o brilho da festa.
Os católicos faziam promessas: acompanhar tal terno, tal dia, até a Igreja Matriz. O pagador (ou pagadora) de promessa era o rei ou a rainha naquela tarde. Devia usar na cabeça uma coroa de latão ou de papelão duro forrado com papel dourado, e usar uma capa de tecido leve, cuja franja (muitas vezes de crochê) era sustentada pelo braço esquerdo dobrado, em elegante estilo.
Ao lado do Rei ou da Rainha ia um acompanhante, padrinho ou madrinha, com um guarda-chuva aberto, protegendo o rei (ou rainha). Tudo muito solene.
Os ternos eram solicitados previamente para pegar reis e rainhas em suas casas. Eram muitos ternos e cada um atendia à realeza de um bairro. Comparecia, a partir das duas horas da tarde, às casas dos pagadores de promessa, que saiam atrás do terno, acompanhando-o. Quando o terno chegava à igreja, o cortejo era de muitos reis ou rainhas, os quais entravam na igreja, e cumpriam a promessa, fazendo orações e dando espórtulas.
Nessa ocasião os congadeiros não entravam na igreja. Permaneciam na praça, ao lado do templo, aguardando os reis e rainhas. Reunidos de volta, enfim, à frente da igreja, congadeiros, reis, rainhas, padrinhos e madrinhas, os ternos se dirigiam às casas para entregar reis e rainhas.
Não aceitavam pagamento nem presentes: a única oferenda que recebiam era um gole de cachaça, tomada pelos adultos do terno em uma única caneca, na qual todos bebiam moderadamente. É claro que em dias de muitos pagadores de promessa, com as numerosas bicadas aqui e ali, o sol quente nas moleiras, alguns congadeiros ficam altos e entusiasmados com os tambores e as cantorias, para desgosto do pároco da igreja Matriz (quando ele ficava sabendo). Mas nada que causasse escândalo.
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No ano de 1947 fui convidado para ser padrinho de Zezinho, meu primo. Ele estivera doente no inicio do ano e a cura fora atribuída à promessa feita por Tio Alberto, seu pai, de ele acompanhar os congadeiros no dia de Santa Efigênia.
Ambos tínhamos doze anos, mas éramos diferentes no tamanho. Zezinho era magro e espigado, muito mais alto que eu, um baixinho de pernas curtas.
Lá fomos nós, todos dois muito compenetrados. Zezinho usava uma coroa feita de lata redonda de goiabada, forrada com seda dourada e uma capa, presa aos ombros, de cor azul celeste, bordada com esmero por tia Jovina, hábil nesta arte. Eu tinha de levantar bem o braço esquerdo, segurando o guarda chuva para abrigar Zezinho, o Rei, de quem eu era padrinho.
Foi um inesquecível dia de gala. Naquela tarde, Zezinho fora o Rei, e eu, seu padrinho, me senti verdadeiramente seu Escudeiro.
Tarde inesquecível, sim, ainda mais pelo jantar, uma bela macarronada preparada por tia Jovina, servida com copos de Guaraná Champagne.
O dia em que Zezinho, meu primo, foi Rei por um dia e eu, seu Escudeiro.
ANTÔNIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 15 de outubro de 2013
Conto # 805 da Série 1OOO HISTÓRIAS