Muito além do reflexo.
Parou diante do riacho para beber, não se importando com toda a sujeira que vinha do rio, que algum tempo atrás era impermisto e cristalino e que agora se transformara em um deposito de detritos de guerra, fétido e de cor duvidosa. Pôs-se a beber aquilo tudo como se estivesse em um sonho e nada daquilo fosse real. Sua sede era tanta que ele poderia facilmente ignorar a agonia que qualquer outro teria ao tocar seus lábios em tal imundície.
Olhou e viu no fundo do lago seu reflexo pálido e desnutrido. Parou. Sua sede já estava saciada, mas sua alma não. Ele vira no fundo do lago não um reflexo de um homem, não mais seu reflexo, mas sim o reflexo de um ninguém, algo bem pior, algo que sua mente não poderia sequer dar um adjetivo. Ele vira a face de um sobrevivente do horror. Um ser humano imundo que o fizeram acreditar durante tanto tempo que não tinha sequer direito a vida, vida essa que haviam lhe tomado a muito tempo, antes mesmo de enviá-lo aquele lugar.
Pensou a si mesmo - Qual o motivo de tudo isso?
No seu rosto já escorria uma lagrima, em sua testa franzina, rugas.
Em suas mãos, calos, estes de tempos de trabalho escravo sem sequer alguém ter dado qualquer tipo de explicação. Era o que era, e havia sido obrigado a fazer. E o que tinha feito? Muito. Tanto que iria se arrepender pelo resto de sua vida. Principalmente ao ter sido obrigado a carregar os restos dos seus e levá-los a covas coletivas, aquelas cheias de outros tantos que já havia derramado e que jaziam apodrecidos naquele buraco.
Nunca irá se esquecer dos últimos estantes em que fora obrigado a abrir tudo àquilo de novo e desenterrá-los. Todos. Um por um. As faces deterioradas daqueles que reconhecera como sendo os mesmos que ali outrora depositara. Reconhecera seu amigo Baruch, levado em uma noite sem qualquer motivo, arrastado por um soldado para onde todos aqueles que estavam amontoados naquele pequeno espaço sabiam que ele iria. Para aquela cova, para aquele lugar que ele agora estava cavando. Não estava.
Estava ali, livre em frente a seu reflexo. Chorou. Chorou pelo seu amigo. Chorou por todos aqueles que ali morreram, e que ele fora obrigado a acumpliciar. Nada fizeram. Ninguém. Nem ele.
Imaginou por um estante o que esperar da vida. Encontraria uma esposa. Iria se casar teria filhos e netos. Uma casa um lar. Tantas coisas, tantas...
Neste momento houve passos, passos estes dados por outros sobreviventes que vinham na mesma direção. Uma voz fraca de outro judeu já sem muitas forças lhe trazia a esperança. Trazia-lhe aquilo que perdera a muito tempo.
- Vamos amigo temos que continuar!
-Continuar? Pra onde?
Eis que o rapaz com olhos cheios de fé, com o dedo apontado para frente lhe profere as palavras que jamais irá esquecer.
-Para algum lugar que possamos chamar de lar.
E então junto com tantos outros que também não tinham futuro partiram em busca de uma nova vida, de um novo mundo.