Relatos do Inferno.
Stalingrado ardia em fogo. O clarão podia ser visto perfeitamente na noite, até mesmo do outro lado do Volga. Meus companheiros e eu estávamos desolados. Havia dezenas e dezenas de corpos espalhados por todos os lados. Alguns em pedaços e outros que se espedaçavam com o cair das bombas dos pesados obuses alemães que não cessavam nem por um instante. Já fazia um tempo que tudo isso não parava, a paz e o silencio já não reinava ali naquele lugar. Nos meus ouvidos, um zumbido irritante que parecia não desaparecer. O pouco que ouvia eram os gritos desesperados de soldados e civis que imploravam por ajuda medica, quase impossível já que tudo ali já estava em ruínas e o que ainda não estava iria ter seu destino muito em breve.
Quando a noite se aproximava os cães fugiam desesperadamente para o outro lado do rio, ansiando por uma última chance de sobrevivência. Chance essa que não tínhamos. Nosso dever era o de ficar ali. Permanecer no inferno até que derrotássemos o inimigo ou tivéssemos o destino mais óbvio. A morte.
A morte para nós parecia iminente. Acostumamo-nos com a morte de uma forma, que não fazíamos amigos. Tentávamos. Mas ainda assim, tínhamos uma união muito forte com nossos camaradas. Porém como o sentimento de morte parecia obvio a todos, acabávamos por banalizar as perdas acreditando sempre que era por um motivo maior. Que era por algo nobre. Seria mesmo? Mikhail, Pavel, Dimitre. Teriam eles acreditado em seu último momento de vida que a morte deles serviria pra alguma coisa? No início, todos tínhamos o sentimento de amor e dever pela mãe pátria. Mas no fim, o cansaço nos deixara confusos. Já não sabíamos se o dever era com nossa pátria ou simplesmente nós matávamos pela ambição de uns. Não sei pra ser sincero se todos estavam com esse sentimento, ou somente eu estava.
Era janeiro de 1943. O dia pra ser bem sincero não lembro. Nenhum de nós contava os dias afinal de contas todos pareciam iguais. A batalha já se encaminhava para o final. “Nós estamos ganhando”, diziam os superiores. “Nossos esforços serão recompensados quando a derrota alemã finalmente vier”. Para mim aquilo não se parecia nem um pouco com uma vitória. A cidade já não existia, somente escombros. Somente uma sombra do que foi a bela Stalingrado. Os civis, obrigados a ficar pelo nosso grande líder, jaziam em toda parte. Alguns poucos sobreviveram. Milhares morreram. Mesmo assim continuávamos a lutar. Lutávamos por uma terra desolada. Lutávamos pela obsessão de alguns poucos. Lutávamos para sobreviver. O fim de cada dia era uma esperança para os que conseguiam sobreviver.
Assim continuávamos. Odiando nossos inimigos. Matando com veracidade aqueles que estavam do outro lado. Não sabíamos quando tudo aquilo finalmente teria fim.
Víamos no amanhecer um sentimento de felicidade por estarmos vivos e ao mesmo tempo uma angustia, pois tudo iria recomeçar, e eu não sabia ao certo se iria sobreviver a mais aquele dia. A saudade de casa parecia aumentar, a cada dia que passava. Mantinha em minha mente as lembranças vivas de um tempo bom. De um tempo onde caçar e pescar com meu pai era minha única preocupação. O cheiro doce do campo. A belíssima visão da casa de meus pais, coberta pela neve, dos maravilhosos dias de inverno. Agora o cheiro se transformara em outro. Um cheiro de carne podre. Queimada. A visão então, eu nunca irei esquecer. Mas nada daquilo eu deixava tocar-me. Nada. Dentro de minha mente eu mantinha somente aquilo que eu queria. Aquilo que me mantinha. Era por aquilo que eu lutava. Lutava por minha terra. Minha família. Lutava. Não era o que eu queria, mas era o que eu tinha que fazer. Talvez aos olhos de outros eu seja um herói lutando pela mãe pátria e pelo nosso grande líder. Mas a verdade é que eu era só um menino lutando para manter livre tudo aquilo que eu mais amava.