CHUMBO GROSSO III
George acordou sem saber onde estava. O quartinho era limpo, a cama, um giral; ao lado dela, uma pequena moringa e uma caneca, feita de lata de óleo de cozinha. O corpo enfaixado e dolorido o fez gemer, quando tentou levantar. De pronto surgiu uma mulher de traços indígenas e idade indefinida - Graças a Deus, acordô. Procure não se mexer pro mode num abri as ferida.- Falava de forma mansa e arrastada, enquanto arrumava os lençóis, pousou uma mão fresca e suave em sua testa. – A febre abaxô, mas vancê inda pricisa ficá deitado, ta muito fraco.
- George obedeceu, sentia-se confuso, e sem forças até para perguntar onde estava. Estar com vida, já era um milagre. Lembrou das horas de fuga e da perseguição, dos tiros, do latido dos cães, voltou a ter medo e agitou-se. A mão fresca, da velha índia, afagou sua testa como se percebesse o seu sofrimento. Aos pouco se acalmou e adormeceu, como uma criança no colo da mãe.
A velha índia o olhou calada e ainda abismada, de como aquele jovem, vencera a morte. Foram cinco dias de luta, tirara as balas, rasgando as carnes com cuidado, usando o velho canivete que pertencera a seu pai. Presente, do patrão branco, que gostava muito do índio Jurandy. A sorte é que as “marvadas”, das balas não entraram fundo, pensou. E o moço tinha sangue bom e as feridas nem “ inflamaro” além do normal. E continuou cismando.
"-E asdispôs ela usava as erva, como aprendeu com os avós; -massa feita de calêndula e alecrim, as flô e as foias, tudo amassado, aplicada como compressa de hortelã e malva roxa. Pingava na língua,do doente, gotas de chá da casca de pitanga, pra abaxá a febre, e o benzia com as reza forte dos nego. E aí estava o minino, fora de perigo... Vai ficar algumas marca, mas era home, num tinha importância, era inté sinal de macheza. Os seus mininos tinha ido inté a cidade pra discubrir arguma coisa, mas vortaro dizendo que a cidade tava cheia de “macaco”, era mio evitá, preles num adisconfiar. A Leocardia, sua irmã mais nova, zangara com ela, por ter colocado, gente, que num conhecia, dento de casa. Mas ela num ligô, sabia que tinha de tentar sarvar o coitado; tadinho, num tinha cara de gente ruim, não."
Com os cuidados de Nanã, George ia se recuperando, as feridas aos pouco foram cicatrizando, mas ainda se sentia muito fraco, perdera muito sangue. Nanã, porém o ajudava a ir lá fora ao alpendre tomar um solzinho, que segundo ela o ajudariam a recuperar o ânimo. Nessas horas George se preocupava, precisava sair dali para não comprometer as pessoas que o ajudaram. George já observara que os netos dela iam todos os sábados vender seus produtos em alguma feira, próxima. Achava que não estava longe da cidade, precisava armar um plano para ganhar a estrada, quem sabe chegar até Recife. Ali poderia se juntar aos camponeses e depois ir pra São Paulo ou Rio... Mas antes tinha de saber o quê acontecera com Anna. Pelos seus cálculos estava ali há quase um mês.
Esperou que os moços chegassem da feira onde foram vender batatas doces e abóbora... Eles tinham uma carroça puxada por uma égua, que os ajudava nos trabalhos da roça e também servia de condução para levá-los a feira. Não eram de muita conversa, o mais novo então era o mais desconfiado, só falavam quando autorizados pela velha índia.
George achou melhor começar contando o porquê fora ferido e também por que a policia o estava perseguindo.
Eles ouviram tudo em silêncio, a velha, pitando um cachimbo que alimentava com uma palha cheirosa, misturada com fumo de rolo. Por algum tempo ninguém falou até que Nanã começou a falar, com sua voz calma e arrastada.
- A gente daqui num intendi muito dessas coisas de cidade, mas somos agradecidos aqueles qui percura miorá a vida dos pobres cumo nois. Foi numa dessas escolas da igreja que os dois aprendero a juntar as letras e fazer contas o qui é de muita serventia, mas quando aprendero a lê arguma coisa e já ia pra outra escola eu num deixei. Pricisava deles pra ajudá na lida e adispôs, saber dimais é perigoso... Já vi muita coisa nessa vida. Pensando assim temo vivido sem confusão. O sinhô que é home de letra, sabe que quando muda guverno os mais fraco é que apanha. Os ricos sempre dão um jeito de se ajeitarem com quem ta pro riba. E os pobres continua como sempre foram. Já vi muitas veis home morrê nas mãos de jagunço ou de “macaco” e o mundo continua o mermo. Rico gozando a vida e pobre trabaiando, assim é desde qui o mundo é mundo.
Por hora vuncê se aquieti, que ainda não ta bom, na hora certa nós dá um jeito de ajudá vuncê a saí d’aqui.
George não soube o quê responder, começara a escurecer e ele foi até o alpendre para pensar melhor.
O sol lentamente se escondia deixando um rastro avermelhado entre as sombras da caatinga. Ao longe uma cigarra cantava, acompanhada pelo coaxa das rãs, aos pouco a escuridão se fez completa. Seus olhos foram se acostumando e passou a divisar contornos, podia ouvir o silêncio, mesmo assim sua alma estava pesada. No peito uma dor grande, de tristeza, saudade... Tinha pavor de pensar no quê poderia ter ocorrido a Anna...Sentia-se impotente, louco por noticias...Parecia ter enveredado por um portal do tempo, onde tudo parara, pela porta entreaberta podia vê as oscilações de luz, da lamparina, fazendo desenhos na parede tosca, de barro.
Um estalido fraco, mais nítido o fez voltar-se bruscamente – Num se assusta, seu George, sou eu – Oi Quinzinho, não vi você aí, falou.- Eu cheguei agorinha, fui andá um pouco pra refrescar a cabeça. Pensei muito e resolvi lhe ajudar, mesmo sem autorização da vó. George ouviu interessado o que o cabloco lhe sugeria. – as depois de amanhã vou a cidade comprar querosene, sal e outras coisas aqui pra casa e se o senhor quiser, eu posso levar algum recado pra sua família ou sei lá pra quem o senhor achar que deve avisar. Acho que ninguém vai desconfiar de mim. O que o senhor acha?
George nem acreditou no que estava ouvindo... _ Quinzinho acho que Deus leu meu coração, tava ficando desesperado. Mas fico com medo por você, será que não tem perigo?
Perigo sempre tem, seu George, mas eu tomo cuidado. E depois os “macacos” não são tão espertos, assim, pois o senhor ta há algumas léguas da cidade e eles nem desconfia.
-Combinaram tudo, George só deixou claro, que o Quinzinho não deveria se expor. Não mandou, carta e sim apenas o escapulário que trazia sempre com ele e fora presente do pároco. Assim se desconfiassem ou se fosse pego nada o denunciaria. Não era por ele que agia assim e sim para protegê-los.
Na segunda feira , o sol ainda nem pensava em surgir e os dois já estavam cochichando pelos cantos. Quinzinho já estava quase saindo, quando Nanã apareceu, na cozinha. – Tão cedo, já está saindo? Nun vai tomá um café ou uma garapa pra espantar o sono? – Não vó, quero chegar cedo, na cidade. -Tome cuidado. Num dê trela pra quem num conheci. - Ta bem vó, sua benção.- Que Deus ilumini seus passo e Nossa Senhora da Guia, lhe proteja.
George observa calado, algo lhe dizia que Nanã, já sabia de tudo. Ele não conseguia olhá-la nos olhos.
- Dona Nanã– Foi dizendo, mas ela não deixou terminar. – Ta tudo bem, seu Gorge, ninguém foge do destino. Vá discansar se não inda é capaz de acordá os outros.
George voltou para o quartinho, sem saber o que pensar. Como ela percebera, se perguntava... A cada dia a velha índia crescia aos olhos dele.
O dia demorou a passar, mas bem antes do anoitecer, para alivio de Nanã e George, Quinzinho chegou sã e salvo.
Mesmo sem falar tudo que vivera, era por demais, tímido, o rapaz se sentia orgulhoso.
É certo que ninguém repara nele, nem mesmo quando entrou na igreja e ficou sentado depois das beatas terem saído.
Padre Juvêncio após celebrar a missa das cinco, se dirigia para casa Paroquial, quando foi abordado. Acostumado as figuras mais bizarras não se assustou quando o rapaz de aparência humilde o chamou.
- Padre Juvêncio é o senhor? – Sim, respondeu. – Preciso falar um “minutin”, com o senhor.
- Meu filho, o horário para confissões é antes da missa. Daqui a meia hora mais ou menos estarei de volta. E continuou andando, num andar pesado de quem está sentindo dor. As pernas um pouco atrofiadas era ainda conseqüência, de sua prisão nos campos de concentração, era judeu da Polônia.
Quinzinho não desistiu, - Padre, sua benção, e abriu a mão direita, em súplica de forma que padre visse o escapulário de ouro.
O padre olhou para os lados e falou baixo, como quem tem medo de ser ouvido;
- Venha comigo. Entraram na casa onde uma mulher o aguardava e olhou surpresa para Quinzinho.
- Dona Lourdinha, por favor, coloque mais um lugar à mesa que o meu amigo vai tomar café, comigo. E o padre Henrique já levantou? – Já padre. – vá procurá-lo e peça para ele vir falar comigo, o quanto antes.- Certo, respondeu a governanta, olhando intrigada para o jovem. Colocou mais uma xícara na mesa e ficou esperando que o padre a dispensasse. - Dê o recado que lhe pedi e não deixe ninguém entrar, o meu amigo vai se confessar, enquanto tomamos café, não quero ser interrompido.
- Dona Lourdinha saiu da sala desconfiada, mas sabia não poder entrar ali enquanto não fosse chamada, pelo padre.
- E ai meu rapaz, como conseguiu este escapulário? – É uma história cumprida, seu padre, e contou o que sabia para o sacerdote..
-Padre Juvêncio ficou emocionado em saber que o jovem professor se salvara. – Foi um milagre, um milagre, repetia. Minutos depois padre Henrique bateu a porta. – Pode entrar Henrique. E contou tudo o que acabara de ouvir. – Padre Henrique era um homem magro, calvo e com alguns fios de cabelo revoltos que lhe dava uma aparência cômica, apesar dos olhos azuis penetrantes e inteligentes. Era conhecido na região por sua bondade para com os pobres e os perseguidos pelo novo regime. Quase não falava português e já fora preso algumas vezes acusado de facilitar foragidos a sair do país.
- Vamos ajudá-lo, falou na sua língua enrolada, era polonês de nascimento, mas se dizia um cidadão do mundo.
Deixaram Quinzinho, numa pequena sala, quase sem mobília. Havia apenas uma estante e uma mesa de estudo, com duas cadeiras, antigas. Sobre a mesa, uma Bíblia, aberta, no livro de Jô, leu Quinzinho, com um pouco de dificuldade. Perto da Janela um banco alto, onde havia uma jarra, com uma única flor, na parede clara, um quadro de Maria com o menino Jesus no colo. Quinzinho foi até a janela e deixou os olhos percorrer com calma o pequeno jardim. Nunca visitara um lugar tão bonito, pensou. E uma grande paz invadiu seu coração, junto com o silêncio, quebrado apenas, quando algum pássaro, cantava ao longe. Depois de uns quarenta minutos os padres se juntaram a ele.
Estava tão absorto que se assustou com o barulho da porta se fechando. – Meu rapaz você tem uma missão, muito importante. – Falou o padre mais velho. Não podemos mandar nada escrito para o nosso amigo. - Evitou falar o nome de George. Estamos sendo vigiados e você tem que sair d’aqui o mais rápido possível e de forma discreta. Faça o que tem de fazer na cidade e volte pra casa sem conversar com ninguém. Você vai levar esta garrafa com água benta e se for parado por alguém que pergunte o que veio fazer aqui, deverá dizer que está levando esta água benta para alguém doente, mãe, tia, vó, sei lá invente; não é pecado mentir quando o motivo é justo.
Se por algum motivo não puder entregar a garrafa para o nosso amigo, faça-o saber que dentro de dez dias, o padre Standislau,não esqueça, estará na igrejinha da Bica, ele sabe onde é. E entenderá o que tem de ser feito. Mas só ele deve saber desta nossa conversa entendeu?
Agora vá, meu rapaz e que Jesus lhe proteja.
Ah! Já ia esquecendo, fale que a água da garrafa deve ser derramada, ou bebida, logo. Não esqueça. Vá meu filho, vá e fez o sinal da cruz.
Quinzinho fez tudo como lhe mandara o velho padre, sem nenhuma dificuldade. Ao chegar em casa deixou a carroça na porta e entrou rápido, cuidaria de Boneca, era assim que chamava a égua, depois.
George o esperava e tremia de tanta ansiedade, Nanã não falava nada mas, passava as contas do rosário, estava rezando... Ela levantou para sair quando Quinzinho entrou, mas George não deixou.
- Fique, ninguém melhor que a senhora para ouvir tudo. Devo-lhe a vida não posso ter segredos pra senhora. Nanã sentou-se agora pegando o velho cachimbo. – Fale logo, minino, num vê qui tamo, botando o coração pela boca. – Quinzinho contou tudo e entregou a garrafa para George, que na pressa ia jogar a água fora, mas Nanã não deixou. –É benta - e pegou uma vasilha e entregou para George que entornou a água, mas não viu,nada... Já ia quebrá-la, quando a velha índia, passa os dedos, na borda da garrafa sente uma película soltando. Olhou com mais cuidado e percebeu que havia algo preso dentro da garrafa. Puxou calmamente e retirou algo envolvido num plástico. George abriu com cuidado e leu
a mensagem:
Meu filho, Deus te abençoe,
Anna foi presa, mas está bem.
Estamos vigiados, pois como.
Não acharam seu corpo, acham
Que nós o estamos escondendo.
Dentro de dez dias, Stanislau irá
Celebrar missa, na “igrejinha”.
Irá ajudá-lo. Não perca a fé.
Jesus irá ajudá-lo.Tenha fé em Deus.
Benção a todos.
J.
George abraçou-se a Nanã num pranto profundo.Quinzinho disfarçou, mas também chorava.