FOI TUDO UM ENGANO
Assim que ele entrou no grande salão pode sentir a tranqüilidade do local. Pode observar que era amplo, com decoração simples mas de muito bom gosto. As pessoas que entravam podiam seguir até o balcão com tranqüilidade. Quando ele aproxima-se do balcão, pelo lado direito, a porta lateral é escancarada, e cerca de quarenta pessoas invadem o salão por aquele lado. O atendente que o atenderia, desvia o olhar:
- Eita! – e voltando-se pra ele – Um momento, senhor, que parece ter surgido uma emergência. Volto já!
- Bem... Espere! Na verdade é coisa rápida. Eu queria fazer uma reclamação...
Antes que ele termine o atendente vira as costas, seguindo em direção à turma recém-chegada. Outros atendentes vão ajudá-lo. Ele olha prum lado e outro e percebe que está só por ali. Percebe também que o chefe dele está em uma mesa mais a dentro, examinando a papelada e vez ou outra bate o carimbo. “Humm – pensa ele – Quanta burocracia por aqui... De qualquer forma acho melhor falar diretamente com quem manda por aqui”. Gesticula, procurando chamar a atenção.
- Psiu! Ei! Posso falar com o senhor?
Aquela figura, sem levantar o rosto, ergue apenas os olhos em sua direção, por poucos segundos, e volta ao que estava fazendo. Apesar da balburdia feita pela turba que chegara pela porta lateral, com o local amplo, podia-se ouvir a batida do carimbo e seu eco pelo salão.
- Meu caso é urgente! “Me despacharam” pra cá por engano... Estou no lugar errado. Não sei como voltar daqui. Preciso que alguém guie de volta.
Depois de algum tempo, sem sucesso em sua reclamação, o chefe o olha novamente, e depois pros atendentes e emite um som bem baixo:
- Psst!
Um dos atendentes retorna com um olhar. Após um movimento com o olhar do chefe, este se dirige ao recém-chegado. Ele, já meio irritado, não consegue controlar o mau humor:
- Poxa! Eu estou aqui me esgoelando há um tempão e ninguém me dá bola. Basta um simples “Psst” e vocês ouvem. Francamente...!
- Desculpe-nos Senhor! Sei que não estamos lhe dando a devida atenção, mas surgiu um fato inesperado. São passageiros de um ônibus lotado e parece que não havia reserva pra todos eles, não os esperávamos. Enfim, estamos tentando resolver o impasse.
- Mas isso não é problema meu. Sinto aqui muita desorganização neste local. Eu quero resolver o MEU problema, que me parece mais urgente.
- Sim... em que posso ajudar-lhe?
- Eu vim parar no lugar errado. Não era pra eu estar aqui.
- Me parece o mesmo tipo de problema daquele grupo.
- Não tô falando? Vocês estão muito desorganizados. Precisam se atualizar, investir em equipamentos mais modernos, pra poder agilizar o atendimento.
- Estamos providenciando isso, senhor. Aliás, creio que isso tenha acontecido justamente durante o teste do novo sistema. Alguma coisa deve ter saído errado.
- Deu pra perceber...
- Peço apenas que aguarde um pouco mais que já vou lhe atender...
- Não posso esperar muito. Meu caso é urgente. Exijo um atendimento imediato!
Diante daquela insistência e sem saber o que fazer, tendo que dar atenção àquele chato e também à turma do ônibus, o atendente olha pro chefe, que continua absorto em seu trabalho. Olha pro lado e vê o contínuo um pouco ao fundo, meio escondido. Este os observava já há algum tempo, sorrindo daquela cena toda. O atendente acena, ele vem e recebe a incumbência:
- Escute só. Estamos em uma emergência ali do lado e não podemos atender este senhor adequadamente. Ele alega estar aqui por engano. Poderia conduzi-lo a outra ala por favor?
- Certamente que sim – responde o contínuo. E virando-se para o senhor ao lado – Queira me acompanhar por favor.
Saem pela porta oposta e descem por uma escada, chegando a outro salão, também amplo e muito bem decorado. Enquanto o contínuo aperta o botão chamando o elevador, ele diz:
- Puxa! Vocês gostam de ostentar, hein?
- É o marketing do nosso negócio.
- Tá, mas apenas uma observação. A gente não deveria estar indo pro outro lado, de onde eu vim?
- Como assim? Você disse não estar no lugar correto. Existem apenas dois destinos, além da grande sala de espera, é claro.
- Mas não havia ninguém ali. Era minha vez de ser atendido, quando apareceu aquela turma toda.
- Ali é apenas a triagem. Por algum motivo você foi parar naquele local. Deixe-me verificar nos registros.
O elevador chega. O contínuo pensa um pouco e dirige-se a uma atendente do balcão da sala inferior e pede pra usar o terminal. Examina por um tempo, depois pede ajuda a ela. Quando volta até ele:
- Realmente. Não consta nenhuma reserva, nada referente a você por aqui. Não conseguimos achar nenhum registro seu também no andar de cima, muito menos na ala de espera. Algo grave deve ter acontecido.
- É o que estou tentando dizer desde que cheguei aqui, mas parece que ninguém quer me dar ouvidos!
- Voltemos ao andar de cima.
Enquanto ele espera no balcão, o contínuo dirige-se à mesa do chefe da seção, a qual já estava cercada dos demais atendentes. Segue-se nova discussão. “Caramba! Ô pessoalzinho folgado. Podiam agir mais e discutir menos”. Ele olha em volta, preocupado com a demora. “Tomara que ainda dê tempo”.
O contínuo retorna pouco depois:
- Bem, como eu havia imaginado, houve pane em nossos sistemas. Já estamos providenciando os reparos necessários.
- E eu? Como fico?
- Bom, vamos voltar à origem de tudo. Aconteceu o mesmo com o pessoal do ônibus. Vamos aproveitar e pegar carona com eles. Assim agilizamos o atendimento.
Saem pela lateral. Três pessoas do ônibus não os seguem, um casal e um senhor de idade. O contínuo pergunta:
- E vocês? Não vão retornar conosco?
- A gente resolveu ficar – responde o rapaz mais jovem – Não há nada mais nos interessando por lá. Meu avô resolveu ficar e vamos ficar com ele.
Sem mais conversa, entram no veículo e partem.
Chegam ao local da confusão. Cada qual tinha uma versão pro acontecido. Nova balbúrdia tem início. Um dos atendentes grita:
- Chega! Vamos por ordem aqui. No momento não importa a vocês de quem seja a culpa. Outro departamento já está cuidando deste assunto. O que queremos agora é consertar toda essa confusão. Pretendo devolver todos vocês aos seus lugares. Exceto pelos três que resolveram ficar – o virando-se pro contínuo – Você, resolva com esse aí como vai ficar a situação dele.
- Certo – responde o contínuo.
Vira-se e dirige-se ao veículo próximo, acompanhado por ele. Observa toda a situação.
- Bem... É uma situação complicada. Três pessoas ficaram pra trás. Neste caso eu te devolvo ao seu lugar mas você terá que pagar um preço por toda essa confusão - Ele assente com a cabeça – Estipulo então o pagamento em uma perna, um braço e um olho.
Neste momento um dos atendentes grita de lá.
- Espere! Dois dos que ficaram pra trás resolveram retornar. Parece que ela estava grávida e o casal resolveu continuar de onde pararam.
O contínuo olha pra ele:
- Bom... Mudanças de planos então. Como é uma situação inusitada, devido à pane em nossos sistemas, e tendo ficado uma pessoa pra trás e voltando duas, faço o mesmo com você. Restituo-lhe dois dos débitos pendentes e deixo-lhe escolher com qual das três opões deseja pagar.
- Isso ta parecendo promoção de supermercado! – observa novamente toda cena à sua frente e diz quase em tom de súplica - Isso é mesmo necessário?
O contínuo gesticula mostrando a cena à sua frente. Um ônibus tombado, alguns bancos arrancados sobrepostos a outros, e outro veículo incrustado na frente, todo amassado. Ele se vê lá, sentado no banco do motorista do carro, ao lado de uma garrafa de whisky vazia, a perna presa nas ferragens e o braço prensado entre a carcaça e o chão. No ônibus, as pessoas que retornaram buscavam ocupar seus lugares. Ao longe ouve-se o barulho de sirenes, aproximando.
- Rápido pessoal. Vamos logo com isso – diz um dos atendentes.
Algum tempo depois, no hospital, ele levanta-se da cadeira de rodas que o levara até a saída. Põe o óculos escuro pra esconder o hematoma do olho que teimava em continuar visível; por sorte continua a enxergar com ele. Pede ajuda pra levantar-se. Com o braço engessado não conseguia usar corretamente a muleta que o acompanharia pelo resto da vida devido à amputação de sua perna esquerda.
Ele olha pra cima. Olha para os parentes de forma resignada. Aceita a ajuda deles. Pelo menos até que consiga se virar sozinho.
Walter Peixoto
Mai/2015