803-OS LIVROS DE VOVÓ BIA - Memórias do autor
Vovó Bia tinha a pele muito clara e sensível. O que era sinal de beleza na Itália, sua terra natal, passou a ser inconveniente no país tropical para o qual imigrara. A vida ao ar livre sob o sol causticante provocava sardas e manchas nos braços e no rosto, que estavam mais expostos.
Com o passar dos anos, as manchas foram aumentando e transformando-se em escaras, pouco valendo a estação de águas que fazia em Poços de Caldas, onde passava um mês todos os anos, tomando banhos sulfurosos na tentativa de diminuir os efeitos deletérios de tanta exposição ao sol.
Aos poucos, remédios pomadas e tratamentos médicos se tornaram necessário. E para estar mais perto dos recursos de que precisava, e também para ficar mais dentro de casa e expor-se menos ao sol, vovó Bia passou a morar na cidade, na casa do irmão Francisco, onde já moravam o filho Armando, as filhas Carolina, Maria e o marido Pedro, com os filhos Tonico e Artur. Vovô Aníbal não quis mudar-se e ficou morando na Fazenda Palmeiral, com o filho Alpineu, a mulher Elvira e os filhos Dorinha, Tavinho e Carlinhos.
Os pertences de vovó foram transportados no antigo caminhãozinho do vovô : malas de roupas e sapatos, caixas com miudezas e a estante de livros.
—Cuidado com o armário—, disse Alpineu, que dirigia o caminhão e avisava os ajudantes. —Não vão me quebrar as portas de vidro!
O armário foi colocado na sala de visitas, e depois de limpo e com os livros arrumados, passou a ser uma peça decorativa da qual todos na casa se orgulhavam. A altura era de aproximadamente dois metros, por um e meio de largura, com duas portas de vidro, frontão entalhado e fechadura dourada, pés ao estilo Luiz XV, os vidros brilhando de limpos. Realmente era um móvel elegante e ao mesmo tempo discreto.
Os livros de Vovó Bia ocupavam apenas duas das cinco prateleiras. Seus livros eram muito bem cuidados, com as lombadas coloridas e mantidos em pé por encostos de madeira.
—Eles devem ficar sempre em pé, nunca encostados uns nos outros, para não estragarem a encadernação. — Explicava a simpática velhinha.
Os livros de Vovó Bia eram poucos. Além de uma quantidade enorme de almanaques (que chegaram separados, em duas caixas de papelão) tinha poucos livros, mas todos volumosos: Histórias das Mil e Uma Noites, Os Doze Trabalhos de Hércules, A Narrativa da Extraordinária Viagem de Marco Polo, Contos Maravilhosos da Mitologia Grega, Napoli e Pompea.
Como ainda sobraram prateleiras vazias, nelas foram colocados os livros e revistas que andavam espalhados pela casa: uma coleção de Seleções do Reader’s Digest, do ano de 1942, de Armando. Livros didáticos muito antigos, usados por Maria e Carolina na escola de dona Isbela Nicácio há mais de trinta anos, um enorme Atlas Mundial de Francisco, edição de 1905, no qual ainda não constava o estado do Acre. Livros de Pedro de desenhos artísticos, que ele usava para fazer desenhos que transformavam em entalhes sobre madeira. E os livros de Tonico e Artur, usados no grupo escolar, acrescidos de outros de literatura infantil, como Aventuras de um Aviãozinho Vermelho, Raiar de Um Novo Dia, Dom Quixote para Crianças e Ursão.
— Puxa vida! — exclamou Tuniquinho. — Agora vou poder ler todas as histórias que vovó Bia conta prá gente.
E naquela mesma noite pediu para a avó.
— Me empresta um livro?
A doce velhinha abriu o armário (trancado a chave) e pediu ao neto que escolhesse. Ele olhou, olhou, olhou e apontou para A Narrativa Extraordinária das Viagens de Marco Polo.
E quando o garoto foi para cama, sentado nos lençóis e encostado no travesseiro, começou a viajar com Marco Polo pelas distantes terras do Oriente.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 3 de outubro de 2013
Conto # 803 da Série 1OOO HISTÓRIAS