Catástrofes
Eu estava debaixo do corpo de minha mãe, agarrada à minha irmã, quietinhas nós duas, apavoradas com o sofrimento e com os gritos de nossa mãe em cima da gente. Não me lembro de nenhum barulho e uma das águas do telhado tombou sobre o outro telhado, arrastando-se continuamente por cima da casa, arrancando-se de sua base, arrancando postes e fios elétricos, parando incólume do outro lado da rua, num terreno baldio. Minha mãe chorava e tentava sair de dentro da casa, porém o incêndio da caixa de luz não permitia e não deixava que os vizinhos viessem nos socorrer; por fim, o que para nós pareceu uma eternidade aquele fogo extinguiu-se e vieram em nossa ajuda. Isso foi em Videira, no ano de 1978 e nossa casa, a única atingida por um vendaval ocasional.
Imediatamente os vizinhos ligaram para o meu pai que veio com um batalhão de pessoas do trabalho com lonas, porém o que mais me recordo daquele dia em que fui apresentada às catástrofes foi o carinho de todos os que estavam lá, com palavras, água com açúcar, crianças para nos distrair.
No dia do tornado, minha mãe me disse que sabia muito bem o que aquele pai que faleceu sentiu quando se jogou por cima dos filhos para protegê-los, pois ela o tinha feito também e disse num sussurro que faria tantas vezes mais e mais e sempre, nem que morresse também – como aquele pai -, e calou-se em suas reminiscências de outrora.
Respirei calada vendo a enchente de 1983 assolando nossa cidade, devastando de maneira arrebatadora as casas próximas ao Rio Xanxerê e todo o centro da cidade ficou inundado pela fúria inclemente das águas e não havia o que fazer, a não ser incrementar o rio com as lágrimas de mais uma marca trágica.
Em 1984 vimos, eu e minha irmã uma enorme bola de fogo que nada mais era do que um vendaval ajuntando toda a terra existente do Bairro dos Esportes e pegou em cheio o ginásio de esportes e vimos as pessoas correndo para debaixo dos carros a protegerem-se do inevitável, enquanto minha mãe quase rasgava-nos as camisetas tentando tirar-nos das janelas para que fossemos para debaixo da cama, como da outra vez e então o vento destruiu a Igreja Matriz deixando a Campina da Cascavel na bancarrota. Sem feridos. A cidade era menor e os estragos também.
Em 1989, 1991 e todos os anos que se seguiram os vendavais e algumas enchentes adentram nossos lares, causando perdas irreparáveis, lembranças partidas, perdidas, consolos que vem de desconhecidos, mãos que nos ajudam a reerguer, a construir, a amar cada vez mais nossa cidade catastrófica. Como poderemos deixa-la, à mercê de sua própria sorte?
Xanxerê nos merece, pois somos um povo forte, unido e trabalhador. Somos construtores e reconstrutores e estarmos aqui é obra de Deus, pois sem nós e sem os que nos antecederam, seria uma herdade, um sertão, onde os ventos sopram sós, sem desavenças, sem mortes e sem lágrimas.
Todos nós temos histórias para contar sobre as perdas irreparáveis, sejam elas materiais ou pessoais. Nunca estamos preparados para intempéries desse porte, e de qualquer outra nunca saberemos como agir se acontecer o impensável enquanto nossos filhos estão nos colégios, desprotegidos de nossos corpos de pais.
O maior de todos os dons do xanxereense é a solidariedade. Não podemos perder a fé no ser humano que se mostra mais partido do que aquele que perdeu tudo, esperança, amor, documentos, crianças, pais, fotos, um anel de noivado.
As atitudes demonstradas pela população ao longo dos anos me faz acreditar piamente na soberba fé que temos pelo nosso semelhante. “Amar ao próximo” já dizia o primeiro dos primeiros nosso Pai celestial, e sabemos utilizar-nos dessa máxima como um hábito.
Força e coragem são palavras que fazem parte de nosso brio. Xanxerê acolhe e deve ser acolhida nesses tempos ruins. Reconstruamos sempre, sem pestanejar, todos estão ajudando da maneira que podem e como podem.
Não tive coragem de escrever esse texto antes por conta de tantas reminiscências passadas e sofridas e pelos longos anos assistindo a tudo bem pertinho de mim, como se o vento me visse e dissesse: “você eu já peguei em 1978” e mesmo quando o tornado evaporou-se na minha frente no último dia 20 de abril, largando os entulhos ao chão então eu pude sentir toda a sua força, o seu rugido de fera a adentrar a minha alma e botar para fora os sentimentos tão bem guardados de medo e assombração que afloraram quando vi restos de roupas pela rua em direção ao Bairro dos Esportes e chorei quando me defrontei cara a cara com as pessoas desesperadas, empunhando lanternas como se fossem espadas à escapar do que já se foi e aquele batalhão de gentes pedindo que o trânsito fosse liberado e não havia o que liberar, porque a outra parte da cidade aquela que não foi atingida não sabia dos estragos e do tamanho da tragédia que estava debaixo de seus narizes por causa da falta de luz, de telefone e de gentes que não se dispuseram a contar aos outros, porque tinham uma missão muito mais importante: o de ajudar os que necessitavam.