800-NOTÍCIAS DA GUERRA NA "VOZ DO BRASIL"-Autobiográfico
Os jornais de São Paulo chegavam a São Sebastião do Paraíso com um dia de atraso e os comentários dos velhos italianos na loja de Tio Gordo eram sobre acontecimentos de três ou quatro dias atrás, e por vezes, até de uma semana passada. Uma confusão de noticias que podia colocar, por exemplo, a vitórias de Monte Castelo, pelo exercito brasileiro, atrás de fatos ocorridos posteriormente.
Mesmo escutando com os ouvidos bem abertos e com a curiosidade de um garoto de seis anos, não entendia muita coisa. Mas eu continuava lá, num canto da loja, onde não me viam, pois os nonni não gostavam de crianças no meio deles.
Meu pai, por sua vez, não lia jornais, mas uma vez por semana, nas noites de sábados, visitava o “compadre” Nicola para ouvir as noticias de rádio pela Voz do Brasil.
Programa oficial do governo, transmitia de sete às oito horas da noite noticias mais recentes, muitas vezes mal compreendidas devido à forte estática. Mamãe, eu e Artur, meu irmão de quatro anos íamos com papai.
Seu Nicola Novelino era ferreiro (hoje se diz serralheiro) e tinha oficina anexa à sua casa, na Mocoquinha. Baixo, magro, sofria de asma, tinha as faces encovadas e olhos fundos. Nunca o vi alegre, rindo ou sequer sorrindo. Para mim era de uma feiura impressionante. (Hoje, ao lembrar seu rosto, associo-o com fotos de Edgar Allan Poe no final de sua vida atribulada).
Era proprietário do único rádio no bairro.
Dona Mariucha, a “comadre Mariucha” era uma senhora gorda, como, aliás, todas as italianas daquela época. Bochechas redondas e boca minúscula faziam sua cara parecer uma lua cheia. Olhos espertos, que dirigia para todos, principalmente para mim e meu irmão.
Assim que chegávamos, ela fechava as janelas da sala de visitas, que abriam diretamente para a rua.
— Não gosto de estranhos ouvindo nossa conversa, dizia.
Ainda penso que era preocupação ou receio. Todos os imigrantes tinham medo do famigerado DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – criado no governo de Getúlio Vargas como polícia secreta, a exemplo das organizações de Hitler, Mussolini e Stalin.
Claro que ouvir o programa “A Voz do Brasil” não era nada de ilegal, mas como diziam, é piu fácile prevenire che rimediare (e´ mais fácil prevenir que remediar).
Era ela quem dispunha as desconfortáveis cadeiras e poltronas de palhinha, de modo que eu e meu irmão pudéssemos dar nossos cochilos, sem cair. Compadre Nicola e papai sentavam-se próximos ao aparelho, as cabeças abaixadas, quase se tocando, a atenção exclusiva para vozes e chiados. Mais chiados do que vozes.
Na sequência das notícias as da guerra vinham em primeiro lugar; quando a transmissão passava para outras notícias o rádio era desligado e os dois começavam a comentar o que tinham ouvido.
Então comadre Mariucha vinha da cozinha com uma bacia de pipocas numa mão e uma bandeja com bule de café e xícaras. Era incrível como ela conseguia trazer tudo de uma só vez, com suas mãos gordas e de dedos curtos.
Desconfortavelmente sentados nas cadeiras, eu e Arthur cochilávamos durante o noticiário. Mamãe nos cutucava quando chegavam pipoca e café.
Então, a conversa era geral entre os adultos enquanto eu e meu irmão megulhávamos as pipocas no café.
Pouco tempo depois, isto é, pelas nove horas, terminava a visita. A gorda comadre fazia questão de nos abraçar com vigor e a gente quase sumia entre seus braços gordos, seios e barriga.
No caminho de volta, havia um prêmio para todos: a passagem na Padaria da Leta, onde papai comprava pedaços de cocada e pães para o dia seguinte.
E lá íamos nós, rua afora, na tranquilidade da noite, comendo doces e chutando pedras na rua sem calçamento.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 13 de agosto de 2013.
Conto # 800 da Série 1.OOO HISTÓRIAS