O louco
-- Cristo foi um homem santo, e digo mais o maior revolucionário que existiu! -- Gritava o velho de boina, e em mangas de camisa.
-- Você é louco. Quer dizer que ele era um vândalo, um arruaceiro qualquer? -- Questionou o outro homem, mostrando muita indignação e uma aparente inquietação, suava, vez ou outra passava a mão na testa. Secando com os dedos as gotículas que faziam seu rosto brilhar.
O velho olhou-o com um olhar penetrante, os grandes olhos azuis pareciam que lhes saltaria das órbitas, fitou o outro sem dizer nada, coçou o cavanhaque cinza, suspirou e disse com a voz rouca.
-- Rapaz, se você for ler as escrituras, verá que ele passou por tudo naquele julgamento, no qual acabou em sua crucificação e morte, suportando como pode um castigo desumano, apenas por ser fiel às suas idéias. Quais pregavam o amor e a colaboração entre os irmãos. Isso soa estranho e parece que eram idéias opostas as do governo da época, foi contra os líderes religiosos que se aproveitaram do seu povo por muito tempo, mas nunca abandonou seus ideais, mesmo sabendo o que iria acontecer, isso não lhe parece um ato revolucionário?
-- Sim, mas só suportou porque era filho de de Deus. Disse o outro com os olhos arregalados.
-- Disso eu não sei, mas sem dúvidas foi um homem e tanto.
Ficaram em silêncio, ao fundo se via as pessoas olhando os homens que conversavam, algumas perplexas, outras indiferentes, havia ainda os que riam e os que olhavam para os celulares. Uma criança atravessava o vagão correndo aos risos. Aparentemente alheia àquele universo.
-- Então, como você acha que devemos agir quando comecarem a implantar o tal chip? -- Perguntou o velho com olhos de coruja que observa um roedor, no escuro da noite negra.
-- Eu não sei, estão dizendo por aí que é o chip da besta! Disse o homem suado com os olhos arregalados.
-- Cara, não sei se é da besta, mas tenho medo mesmo assim. Não sei do que essas pessoas são capazes de fazer. Com esse chip eles podem controlar e matar qualquer um -- deu um profundo suspiro e prosseguiu -- Pensa, um cara descobriu a energia nuclear veio um outro e inventou a bomba atômica, o mesmo acontece com os raios lasers e outras invenções tecnológicas e científicas. Veja você, este celular por exemplo serve tanto para chamar um médico, como que para mandar matar alguém. Mas não é exatamente o mesmo aparelho? A diferença não está apenas na intenção? Indagou o velho.
-- Sim, você tem razão. -- Afirmou o outro enquanto olhava pela janela.
-- Então esses avanços podem ser usados para o bem ou para o mal, não é mesmo? Disse o velho fechando os olhos.
-- Exato! Então, o que devemos fazer quanto chip?
-- Você, eu não sei, mas eu vou agir feito Cristo e irei contra o governo ou qualquer um que queira implantar alguma coisa em mim. Quero fazer valer meu direito ao controle do que entra ou sai do meu corpo, já que pelo mundo não posso andar livremente. -- Disse o velho, como se fizesse um discurso solene.
-- E como vamos vender nossas coisas, para os passageiros que tem o chip da besta?
-- Disse o outro, fazendo todos os que estavam em volta irromperem em gargalhadas.
-- Não venderemos! Pois para vender seria preciso estar cadastrado nesse sistema, logo você iria precisar ter o chip. Aliás acho que seria o fim de trabalhos feito o nosso.
-- Disse o velho, seguido do silêncio.
-- Como iriamos viver? -- Perguntou o outro com semblante assustado.
-- Existem outras formas de vida, bem mais simples que não exigem a aceitação cega de todas as imposições do sistema, devemos procurar as que mais nos agrada. Acho que é hora de rever os conceitos e começar a usar a cabeça, do jeito que as coisas vão se grande parte do que dizem for verdade, precisaremos duma mudança radical.
-- Disse o velho, enquanto todos o observavam. -- Eu, meu amigo, espero que não acabem com o carnaval, pois senão vão calar o samba, vão calar nossa voz e depois nosso direito de pensar, daí não restará mais nada, muito menos os sonhos, pois nos levarão tudo. Mas enquanto nada disso acontece, deixa eu vender meus produtos.
-- Senhoras e senhores, boa tarde desculpe atrapalhar o silêncio de sua viagem. É que trago boas novas para os senhores, se você sofre com dores na cabeça, nos olhos, na coluna, nos músculos, problemas no fígado, reumatismo e problemas nos rins. Trago aqui a verdadeira banha do peixe-elétrico e o maravilhoso óleo da andiroba, gritava ele com a voz grave enquanto batucava um ritmo cadenciado na tampa do isopor. Enquanto sumia na travessia do outro vagão se ouvia sua voz entoando os versos de um antigo samba:
..."Uns com tanto,
Outros tantos
Com algum,
Mas a maioria
Sem nenhum."...
No caminho oposto um homem falava com o outro -- É por isso que o louco não vende nada. Quer ficar conversando mó tempão.
-- Eu não sei quem é o louco. -- Disse o outro.
-- O sambista, aquele que fala pra caralho.
O trem chegou ao fim da linha.