"A PRIMA MORENINHA"

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A PRIMA MORENINHA”

Ronaldo Trigueiros Lima

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- I -

Foi lá por volta dos anos trinta, que a prima “Moreninha”, respeitabilíssima senhora da sociedade Caravelense, famosa, pela gordura mórbida, e presidente da “Irmandade de Cristo Jesus” que distribuía cestas básicas e remédios, aos desfavorecidos da periferia desde que submetessem as regras retrógradas da organização que era presidente.

De repente, assim sem mais nem menos, de chofre, sem qualquer justificativa, “chocou” toda irmandade com sua ausência no dia da visita do prefeito. A princípio tudofoi contornado com aquela desculpa de mal súbito. Entretanto, só bem mais tarde, quando tudo parecia estar acomodado, com a saída das autoridades é que ainda atônitos pela surpresa é que tomaram conhecimento que a veneranda matriarca, presidente da Irmandade embarcara com o marido Custódio no navio Pedro I do Loide brasileiro rumo ao Rio de Janeiro.

Após confirmada a notícia estourou como uma bomba, despertando enorme desconforto para seu Firmino, contador experiente da Irmandade. Foi aí que o velho contador, sempre cauteloso com as contas, e que já algum tempo andava taciturno, desconfiado, como se intuísse, de algo podre que poderia estar acontecendo resolveu colocar a “boca no mundo.” Isso é coisa de seu Custódio! Aquele pilantra nunca me enganou, Justificando com essa explosão a antiga antipatia que nutria contra o marido da benemérita presidente. Na verdade o seu Custódio sempre fora o alvo preferido não só do seu Firmino, mas de outros tantos da irmandade que cochichavam a boca pequena sem qualquer alarido, ajuizando entre dentes as piores coisas entre orelhas, temerosas que dona Moreninha os ouvisse. O caso é que apesar do privilégio de ser o marido da presidente, ou por ciúmes, ou inveja, era tido como um aproveitador despudorado indigno de sua santa mulher. Especulavam inclusive, possíveis sofrimentos por parte da benemérita, no recesso do próprio lar.

-Sempre ele! Sempre o senhor Custódio. Era o que se cochichava pelos corredores!...

- Coitada de dona Moreninha! Certamente ele a obrigou. É um crápula!

-E a ilibada benemérita sentindo-se envergonhada minha gente,não teve outra saída que não acompanhá-lo. (Disse uma funcionária visivelmente “chocada”).

Enfim, todos se perguntavam com ares de revolta, o porquê do acontecido... ? - Outros Até imaginavam grave doença? Diziam inclusive os mais íntimos mal amados sobre a possibilidade de crime passional.

– Vire essa boca pra lá... O Senhor Jesus, há de protegê-la!

- Talvez a morte de um parente? Ninguém está livre, não é?

De repente a verdade foi oficializada na tesouraria. Seu Firmino novamente aos gritos, agora mais estridentes estremeceu os corredores do prédio:

-Estamos falidos! O banco acabou de confirmar que estamos inadimplentes! Zerados!Sem fundos, com “papagaios” a pagar!... Zerou!

- Mas como?... Quem poderia ter sido?...

Neste exato momento a fama de Custódio ficaria marcada para todo e sempre, apesar de nenhuma prova ser constatada contra ele. Nenhum rastro, nenhuma digital, um olhar atravessado que o incriminasse. A não se pela fama. Mas como quem tem fama deita-se na cama, mesmo sem prova a sentença já havia sido dada. Por isso e por tanto, Custódio foi escolhido como o alvo preferido de todos. Graça a uma antipatia que só Freud explica.

-Mas se não foi seu Custódio... Quem teria essa coragem?!

– Ah! Não quero nem pensar, disse a mulher da portaria.

- O que adianta agente ficar especulando?!

- Nego-me a acreditar!(Respondeu a irmã Margarida amiga de longa data de dona Moreninha.)

– Isso é caso de polícia!(Resmungava o contador cheio de raiva.)

– O que vamos fazer?...

- Alguma sugestão?

– Como explicar a toda essa gente que a despensa está vazia?

- Como explicar ao Coronel Intendente?

-O pior é que não podemos tomar nenhuma atitude sem nos interarmos do acontecido!

- Certamente dona Moreninha tomará as providências necessárias.

- Mas como encontrá-la? Como interá-la do acontecido?

- Seja lá como for , que a benemérita me desculpe, mas até ela terá que se explicar. (?)

- Caso contrário, não nos restará outra alternativa que não seja a da Lei. Doa a quem doer!

- Por enquanto, do jeito que ficamos sós nos resta a ver navios. (Disse o contador pálido de ódio.)

-Mas qual seria o perfil do Custódio? (Perguntava um detetive amador oportunista que passou desde então a freqüentar a Irmandade diariamente, sempre durante as refeições).

- Custódio é um tipo que irradia simpatia...

- Ou antipatia seu Detetive. É desses que de pronto gosta-se ou não...

- Tem o rosto marcado pela “bexiga” que tivera em criança...

–Elegante!

–Dissimulado, isto sim! - Sempre pronto para uma piada de sentidos dúbios! -

-Cheio de mesuras, rapapés, provocador de rizinhos salientes das moçoilas assanhadas que se exibiam principalmente quando o “dito!” desfilava na praça com sua bengala de cabo de prata, e bigode torcido, ligeiramente alevantado.

-Sempre inquieto, caminhando de um lado a outro, num “footing”desavergonhado, com intuito de ser notado, de marcar presença! Era sempre assim... Sabe seu Detetive, segundo me contaram, era comum em viagem durante as férias, longe dos olhos de dona Moreninha evidentemente, vê-lo deitar olhares obusivos para as internas de um colégio em Niterói, de propriedade de uma das primas de sua santa mulher. Eram ali também que os familiares se reuniam alegremente nos feriados da “semana santa”, regado a vatapá, caruru, e outros quitutes, para matar saudades daqui da Bahia! Nem esse momento o “dandim” respeitava. E Em outros exibia sua verbe ao narrar com altivez os feitos lendários do seu avô, um mentiroso tal qual o neto, contador de “causos” e vantagens. Dizia que o avô era íntimo de sua Majestade imperial Dom Pedro II, por ter sua Majestade pernoitado certa vez na sede da fazenda da família, o que lhe valeu o título de Barão. Naturalmente tonto pela bebida, com voz embargada por lembrar com amargura o desfecho da herança que lhe coube e pouco tempo depois, fora subtraída, não só pela desvalorização do cacau, mas, sobretudo pela quebra da bolsa de Nova Iorque nos anos vinte.

Foi assim que completamente falido casou-se no meado dos anos trinta, com dona Moreninha, senhora de família tradicional, filha única, católica, solteirona convicta, extremamente rotunda infelizmente, e que influenciada pelos pais ,contraiu núpcias com esse Senhor, cujo intuito de se livrar da falência, armou essa estratégia que iria lhe garantira o futuro. Claro que não houve amor, ao contrário, interesse, isso sim. Tanto é verdade, que nos anos que se seguiram, suas patifarias sempre às escondidas continuaram por todos esses anos. E sem perder o jeito dissimulado de ser, seria para sempre um bom vivan”! Um Don Juan baiano. Só tinha uma coisa que ele temia... Essa coisa se resumia em ser descoberto por dona Moreninha. Caso acontecesse, o céu desabaria. Imagine se suas peripécias amorosas fossem a céu aberto. Imagine?... Se isso acontecesse teria que reinventar a famosa crise de bronquite asmática que o obrigava ao uso vigiado da “bombinha” que o deixava com taquicardia.

Dona Moreninha quando enciumava era possessa, enraivecida tinha pavio curto. por motivos óbvios, sentir-se-ia dona dos raios, das tempestades. Nem o chefe da polícia, seu Chico Amendoim, famoso pela valentia contra um cangaceiro do bando de “Corisco” se exporia a tal “tornado”. Nem o próprio Intendente, coronel “Borges Epaminondas”, homem de grande prestígio político, se sentiria confortável tendo-a como opositora. Diante dela, até o vigário tirava respeitosamente seu chapéu se por ela cruzasse.

ERA o que era, sem mais nem menos, sem discursão, nem muxoxo, nem vela. Como dizia Tio Vavá: “Geni caiu no chão fez papu”.

= III =

Voltando ao Pedro I, “já fora da barra”, marido e mulher olhavam a esteira de espuma deixada pelo navio, completamente aliviados por estarem distantes daquela mesmice confusa, fora do olhar perplexo e acusador dos fieis aflitos, correligionários da Irmandade.

Agora não poderiam mais retroagir. Só um pensamento bailava no ar: O banho de cultura tão sonhado. A Mudança de ares tão desejada. O sonho de ter a seus pés, a Rua do Ouvidor. O desejo de tê-la nos olhos antes que o vento varresse sua glória imperial, mesmo que fossem apenas pegadas, ou sobras. Ter o Rio de Janeiro inteiro a seus pés. Um sonho que vale qualquer sacrifício, ou até mesmo a Excomunhão. Mudaria seus hábitos, sua forma de ser. Seria outra pessoa. Uma mulher renovada. Uma senhora moderna! Intelectual! Cosmopolita! Delicada! Ah (! Custódio,) Já me vejo andando pela Rua do Ouvidor, confabulando com acadêmicos sobre suas últimas criações literárias! Já me imagino freqüentando a Colombo no aristocrático “chá da tarde”, Completamente inteirada a nata social.

Enfim “à hora é essa amor!” O sonho me fez romper com aquela vidinha medíocre que adoecia meu fígado. “Quem sabe eu possa até emagrecer!”

- Seria ótimo querida, com todo respeito é claro! Mas se esse milagre realmente acontecesse, evitaríamos humilhações vexatórias, como foi aquela na própria Colombo da última vez que você lá esteve. Para não falarmos daquele outro, na casa do Filinho, durante o aniversário do filho dele. E tudo por causa dos seus quilinhos a mais... Lembra-se?

- Não me venha de novo com esse assunto! Sinceramente?! Já o esqueci.

- Mas não deveria! Aquele do automóvel foi demais. Lembra?

- Não. Definitivamente não me recordo.

-O caso da Confeitaria você se lembra? Porque foi marcante demais! O que deu em você para ficar cumprimentando a sua imagem refletida no espelho do grande salão?

-Catarse!Pura emoção! Mas agora é diferente... Preparei-me para ocasião.

- Convenhamos, aquela de ajudar o “garçon” recolhendo a louça dos clientes foi uma pândega! Um festival de gargalhadas! Um total vexame!

-Estava tão embevecida, que não me dei por conta. Foi um impulso irresistível! Um sopro de liberdade. Só quis ser solícita!

Convenhamos, A partir de nossa chegada, esqueça as solicitudes! Se contenha Bernardina?

- Isso não vai se repetir... E quem é Bernardina?

- É você querida! Esqueceu seu nome?

- Já lhe proibi de me lembrar desse nome. Sou uma outra mulher agora..

-Mas enquanto eu não tiver certeza, não vou acompanhá-la ao “Chá da tarde”... Desculpe-me amor. Mas por enquanto, prefiro que chame seu primo Nelsinho para lhe fazer companhia!

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IV

Debruçada no tombadilho do Pedro I, olhando a esteira do navio, dona Moreninha estava longe, imaginando-se no rigor da moda dos anos trinta, entre aristocratas e literatos da Rua do Ouvidor.

Já se sentia uma outra mulher. Uma pessoa normal, como qualquer outra, magra, esbelta, e rica.

Mergulhada a fantasia, Moreninha não pode, ou não quis ouvir o que o marido dizia, ou melhor vociferava a sua volta

- Sinto-me em pleno Centro histórico da capital Federal, em plena Corte imperial, que aliais, diga-se de passagem, jamais deveria ter sido varrida pela quartelada republicana. De qualquer maneira, para mim nada mudou, nem mudará. Pois o brilho fulgente da Monarquia jamais será apagada para mim!

- Se bem me lembro, a Confeitaria é na Rua do Ouvidor, não é Moreninha?

- Não benzinho... ( Custódio observa com estranheza as falas amabilíssimas da mulher.) A Colombo que o grande poeta Emilio de Menezes era freqüentador assíduo, e que costumava chamá-la carinhosamente “ de coisa sua...”Fica na Gonçalves Dias, bem próxima a Rua do Ouvido. É bom que você se intere!

-Nome interessante e engraçado, não acha?... Ouvidor!(?)

- É um nome adotado pelo povo, como conseqüência de ter morado, próximo a Rua da Quitanda, o Ouvidor Dr. Manuel Pena de Mesquita Pinto, e a partir daí, o povo a batizou. Outros nomes surgiram conforme a importância de alguns moradores. No entanto ninguém os aceitava. Até mesmo, de maneira oficial, para homenagear o Coronel Moreira César pela vitória em Canudos. Em vão, nem assim pegou. Ficou para eternidade Ouvidor... Rua do Ouvidor! Já a Confeitaria, reina deslumbrante no coração do Rio de Janeiro.

-... Realmente é um luxo!

- Está entre os mais belos cafés do mundo! Seus enormes espelhos de cristal trazidos da Antuérpia, emoldurados por elegantes frisos talhados em Jacarandá, acrescentam ao grande salão com toque de “Art Nouveau” uma elegância impar incontestável.- Custódio, com a pressa que sairmos, não pôde escrever para as primas de Niterói sobre a nossa chegada!

- Não se preocupe, temos tempo!

-Será?!

-Estamos em outro século. O navio levará pelo menos de três dias para atracar no píer do porto do Rio. Neste mundo moderno abriu-se espaço suficiente para que se possa comunicar com rapidez. O telégrafo é a ultima palavra da tecnologia desse início de século querida! Acredite, posso passar um telegrama neste instante, agora mesmo, aqui de bordo. O vento corre a nosso favor!

-Se é assim, faça-o agora, pois me sentiria menos culpada! Mas não se esqueça de pedir para que venham ao nosso desembarque... Se possível passe um outro telegrama para Filinho, e peça-o que venha com seu automóvel, pois nos facilitaria e muito no translado da bagagem.

- Espero que tenha comprado outro carro. Pois aquele de triste memória era muito “mingnon!...”

-Você nele não caberia! Mas o que tiver de ser será!

- Filinho dará um jeito. Sempre conseguiu tudo que quis Foi sempre um menino de sorte... Nasceu como se diz, virado para lua! Lucrou, por assim dizer, até com o falecimento do pai, que tinha sido nomeado dias antes de morrer como Fiscal de Renda. A sorte nunca o abandonou, abraçou-o de vez! Claro que teve a mãozinha oportuna do general Silvestre, “padrinho” do seu irmão Walter, que na época era uma espécie de “peixinho” do general manda-chuva. Mas o que interessa é que uma nova publicação do Diário Oficial corrigiu o acontecido, e os nomes foram substituídos a tempo. Em vez do nome do pai, o nome do filho... Simples assim!

O que chamam de destino eu chamo de sorte. O que é trágico para alguns são festa e alegria para outros. Dessa forma o dito foi novamente confirmado: Filinho nasceu virado para lua!

-Uns com mais sorte, outros nem tanto, ou bem menos.

- -Mas, pelo tanto que o ajudei em épocas de “vacas magras”, espero em Deus que ele não falte ao nosso desembarque. E com um automóvel decente, condizente e confortável.

- É melhor... Porque aquele antigo não caberia você!

- Exagero seu... O problema nunca foi o meu peso, mas, sobretudo, de certa forma um problema mecânico.

- Não sabia que você entendia de automóveis?

-Também nunca entendi o porquê da sua insistência em bater sempre na mesma tecla?... Quem sabe eu descubra um dia!

- É por cuidado, cuidado com você... Não me leve tão a sério! O carro empacou a ponto de um lado ficar mais alto do que o outro... Isso você não pode negar!

-Prefiro mudar de assunto. Deixa de ser repetitivo! Quem ouve suas bobagens maledicentes, pensa que você é o mais perfeito dos homens. Os incautos não sabem um terço da missa. Mas hoje especialmente, abro uma exceção e lhe absolvo de tudo.

- Certo... Por isso que eu a amo. Vou providenciar o telegrama e já volto querida. Espere-me aqui. Quer alguma bebida?... Um espumante de preferência?...

... Espumante?! Francamente... Agora sou outra mulher meu caro... Se tiver de trazer alguma coisa que me honre, que seja uma garrafa de“Champagne” francesa “Chandon” e com duas taças de cristal, para que possamos brindar nossa cumplicidade e a essa viagem sem volta. Sem arrependimento algum. Por isso devemos saudar a vida! A vida nova que nos espera.

(Vinte minutos depois: )

- Je veux porter um to ast.

-O que é isso Moreninha?

Francês meu caro. Significa que eu vos proponho um, brinde!

- “Aimez la vie que vous menez”.

-“Ame a vida que você vive”.

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Niterói, em 13.03.015

Ronaldo Trigueiros Lima

PS: Este conto é pura ficção, qualquer semelhança com pessoas ou fatos, é mera coincidência.

RONALDO TRIGUEIROS LIMA
Enviado por RONALDO TRIGUEIROS LIMA em 04/05/2015
Reeditado em 19/09/2015
Código do texto: T5230978
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