790-SANGUE PARA O INIMIGO
Renato Lima gostava de fazer boas obras. Quando soube, através de um exame de sangue de rotina, que o tipo de seu sangue era A-negativo, muito raro e só havia um doador desse tipo registrado no único hospital da cidade, pediu para ser inscrito como doador.
— Que bom! Disse a enfermeira que o atendeu quando se apresentou para doar pela primeira vez. — Não temos estoque de sangue desse tipo, e haverá uma cirurgia de estomago em um paciente de sangue A-negativo. Sua doação é muito importante.
— Posso visitar a pessoa que irá receber o sangue que estou doando? –
— Claro que pode, seu Renato. — A enfermeira respondeu e deu-lhe o número do quarto.
Feita a visita, Renato saiu do hospital com a sensação plena de dever cumprido.
Vou visitar todas as pessoas para quem doar sangue, pensou.
E assim procedia, invariavelmente. Levava uma palavra de conforto, batia um papo com os familiares e sentia-se muito bem.
Mas teve uma ocasião em que ao visitar um paciente que precisava de sangue tipo A-negativo, teve uma surpresa.
— Então, o senhor vai melhorar, logo vão lhe fazer uma transfusão.
Tinha os olhos fundos, a face encovada, e a cabeça afundada nos travesseiros. Começou a se interessar pelo paciente, perguntando:
— Quantos anos o senhor tem?
Com os olhos fundos, e a voz debilitada, respondeu:
— Vou fazer quarenta e quatro, meu filho.
— E faz muito tempo que está assim, doente?
— Há muito tempo. Esta já é a terceira vez, só neste ano que estou internado prá receber transfusão..
— Mas, o que o senhor tem?
— Sofro de cirrose.
— Que coisa, hein?
— Pois é, é por causa da marvada.
— Marvada?
—É, seu moço, A marvada da cachaça que me deixa assim. Tá comendo meu fígado, o doutor disse. E me falou que seu eu num parar de beber, vou acabar morrendo.
Assustado ante tão brusca revelação, Renato saiu do quarto. No corredor, encontrou a mulher. Perguntou-lhe:
—Mas o seu marido já tentou abandonar a bebida?Já fez alguma coisa prá deixar de beber?
— Qual o que, doutor (ela confundiu Renato com alguém). Eu falo prá ele deixar, mas quanto mais eu falo, mais ele bebe.
Renato ficou impressionado. Sentiu a inutilidade de seu ato, da doação de seu sangue.E ainda mais em consequência de uma das coisas que Renato mais abominava, — o álcool.
— Não é possível , pensou. Eu esperando estar fazendo o bem, estou é colaborando para que uma pessoa se degrade cada vez mais no vício. Na realidade, estou doando sangue para o inimigo!
Mais tarde, conversando com seu tio, Doutor Alvaro, médico que atendia no mesmo hospital, este lhe disse:
— Pois é, nem sempre a intenção corresponde à função. Aliás, se você não sabe, este senhor morreu naquela noite, embora tenha recebido seu sangue à tarde.
E acrescentou:
— Olha, você é do tipo sanguíneo, seu organismo produz muito sangue. Não deve doar sangue constantemente, pois seu organismo vai trabalhar em dobro para repor o que é doado. Em consequência, sua pressão logo poderá se alterar.
Desde então, Renato nunca mais doou sangue.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte 1 de julho de 2013
Conto # 790 da Série 1OOO HISTÓRIAS