VALEI-ME MEU SÃO VYGOTSKY!

 
     
 Léia era professora da rede municipal de ensino de Goiânia, e era mestre em História de Gênero pela UnB. Morava no Jardim Esmeralda, na zona sul da cidade, e "dava" aulas no Setor Tremendão, na zona norte. Era um punhado de Kms de distância, que ela cruzava com relativo entusiasmo, depois de pegar dois ônibus. Ía com a telha cheia de otimismo pedagógico, que àquela altura do campeonato já começava a esmorecer.
Aula do turno noturno. Era uma sexta-feira e nesse dia, infelizmente, nenhum aluno faltou. Tinha baile funk na quadra da escola depois das aulas. Quinta aula, e a vaca já tinha ido pro brejo, com corda, balde e tudo. A aula era sobre a Reforma Protestante, tema que os alunos evangélicos e pentecostais adoravam, por concordarem com os reformistas por eles terem combatido o "canibalismo" católico e outras atrocidades do mesmo naipe. Isso sozinho já fazia doer até os ossos.
_ E aí, peeeessoal? Entendeeeeram o que foi Ato de Supremacia de 1534?

_ Ticher!
Era o Maicon. Até ele compareceu à aula, depois de não sei quantas suspensões.
_ Fala Maicon.
_ É claro que entendi, véi. Só que eu não gosto dessas velharias que aconteceram antes de eu nascer. Além do mais eu não concordo com a fessora...
"Não acredito", pensou a professora, "que ele tava prestando atenção na aula"
_ ...Pra mim esse tal de Henrique queria era meter o pé na bunda dessa tal Catarina de Aragão, tá ligado véi, é porque ela era uma baranga espanhola chegada num barraco, e ela botava chifre no Rei com qualquer soldado. Aí véi, até mesmo quando ele veio pro Brasil ela corneava ele...

"Meu Deus!", pensou de novo.
_ ...Uma tremenda de uma vagaba, Véi. E tinha a gostosona da Ana Bolena, véi, que fazia um  69 gostoso (só risadas) e era uma baita Maria Coroa...
_ Para Maicon! Você tá pertubando a aula de novo.
_ Deixe eu terminar, Tia.
_ Não!
Disse a professora, já meio fora de si.
_ Não! Além do mais não sou tia de um sujeito escroto como você.
_ Também, véi, eu não tô nem aí pra essa bosta de aula. Vou ser MC no baile funk. Quero é que essa aula chata acabe logo...
_ Silêncio Maicon.
E o menino não parava.
_Silêeeeeeeeeecio! 
_ Vai cagar, véi.
Aí ela perdeu a estribeira e jogou o apagador bem na moleira do sujeito.
Foi o pandemônio. O aluno alegava que a professora não podia fazer aquilo, que conhecia seus direitos, que tinha o ECA que não permitia agressão física num "de menor". Que ia processar a professora, a diretora, o prefeito e até o governo federal.
_ Sai pra fora, seu demônio!
_ Claro que saio, era isso mesmo que eu queria. Fica ligado véi, minha gangue vai tá filmando você lá fora. Fui!
Saiu pra fora, pegou o celular e ligou pra mãe, que era uma ariranha criada em piscina rasa na defesa de suas crias. Deu a sua "versão verdadeira dos fatos": de como a anta da professora tinha acertado um tijolo na sua cabeça, e como tinha até ficado "fora de si". Dona Vânia, esse era seu nome, foi pisando no vento até a escola, áquela altura da noite. Chegou esbaforindo vento pelas ventas. 
_ Queeeeeeeeeeeeero falar com essa efedepe dessa professora.
O porteiro deixou ela entrar e a conduziu até a sala da diretora. Na secretaria encontrou seu pimpolho, que aguardava a lavra da suspensão. Então reforçou o que já tinha dito por telefone, acrescentando alguns ingredientes ainda mais venenosos. Então entrou na sala da diretora.
_ Boa Noite! - cumprimentou a diretora - Pois não?
_ Boa noite o cacete. É pois sim. Eu vim por causa do que aconteceu com meu filho, o Maicon Douglas da Silva. Esse aqui - apontou com o dedo para o anjinho-. Tudo por causa dessa professora chinfrin, essa tal de Léia. Ela jogou um tijolo na cabeça do Maicon com tanta força que ele quase bateu a caçuleta. Isso é contra os direitos humanos! 
_ Calma Senhora. Vou chamar a professora. Salete! - falou com a secretária - chame a professora Léia!
A professora entrou na sala. Depois de cada uma das partes expor os fatos e seus motivos, a situação ficou incontornável. Então disse  a mãe zelosa:
_ Não quero nem saber. Essas professoras despreparadas fazem suas cagadas, depois vem todo mundo defender elas. Vou é procurar "meus" direitos. Vou até a delegacia fazer queixa. Na segunda vou até a Prefeitura reclamar com quem quer que seja. Se for preciso eu vou até ao Vaticano ou até esses fru-fru que ficam protegendo os bichos. E tem mais, eu acho que essa professora também tá enrabichada com esse tal de Henrique Trambique. Ela é cacho dele. É sim. Também fica contando essas histórias de sem-vergonhice na aula! Que envolve chife, separação. E esse velho que vive pengando essa menina novinha, essa tal tal de Ana não sei das quantas. A bicha também fica correndo atrás desse "coroa", foi meu filho que falou que a professora tinha falado, só por causa da Mitsubishi dele. É uma Maria Gasolina. Professora não pode ficar dando esses maus exemplos. Vocês todos vão ver. Vou é embora cuidar do que é meu.
Foi-se a Dona Vânia atrás se "seus" direitos, de novo pisando no vento. Maicon Douglas da Silva foi para o baile funk. A professora ficou catatônica, atônita com o que lhe tinha ocorrido.
E suspirou:"Ufa! Me salve meu São Paulo Freire! Valei-me meu São Vygotsky! Me proteja minha Nossa Senhora de Summer Hill. Amanhã mesmo vou é procurar outro emprego e acabar com esse suplício. Vou é vender pamonha na feira do Setor Pedro Ludovico".
Despediu-se da diretora e foi pegar seus dois ônibus, que eram os últimos. Chegando no Jardim Esmeralda, seu único consolo foi comer uma pizza de R$ 10,00 numa pizzaria de quinta de seu bairro e tomar um refrigereco junto com seu namorado. Não podia fazer quase nada, o que podia fazer era só pensar, pensar em qualquer outra coisa. Pensou que civilização é um estado de espírito, não uma realidade do mundo. Só que poucos têm esse estado de espírito. Estão todos mergulhados na realidade.