777-O FANTASMA SEM CABEÇA
— Deixa disso, Mercinha! Olha que sua mãe pode ver.
— Ara, Jonas, que é que tem?
— Isso não fica bem. Só depois que a gente casar. — O rapaz insistia em dizer, esquivando às tentações da noiva.
Jonas e Mercedes estavam noivos há um ano – noivado comedido da parte dele — que Josias não era besta de meter a mão em cumbuca, apesar das liberdades concedidas pela moça.
Ele era pobre, filho de pedreiro. Estudante na escola de comércio local, tinha vinte anos e tentava desesperadamente obter um emprego. Ajudava o pai, pedreiro, e o ganho era pouco.
Mercedes era bonita, dengosa, apaixonada. Tinha dezesseis anos e era o luxo do pai, Cristóvão Valadão,
Fogosa, tentava o rapaz de mil maneiras.
— Deixa de ser bobo, Josias, ninguém vai saber não! Vem, vem...
Jonas resistia. Sabia da fama do pai.
Valadão era comerciante de cereais no atacado estabelecido há muitos anos em Santa Fé. Homem sério, preocupava-se com a filha e vivia cobrando da mulher a vigilância sobre a moça.
— Toma cuidado de Mercedes. — Recomendava, quando saia de viagem. Sabia que a filha era da pá virada, e tinha de confiar na mulher, pois viajava constantemente pelo interior, fazendo negócios, comprando cereais diretamente dos fazendeiros e sitiantes. Homem de poucas palavras, era muito desconfiado e não tolerava uma mentira ou uma negaceada nos combinados.
Mas quem pode com os arroubos de uma garota fogosa e apaixonada? Ela queria se casar e não aguentava ficar perto de Jonas sem exercer seus atrativos,
—A gente só vai casar quando eu tiver um emprego bom, que garanta nosso sustento.
Um dia Mercedes disse a ao noivo:
— Acho que estou grávida.
Ele levou susto no primeiro momento, mas em seguida voltou ao senso:
— Mas como? Nós não fizemos nada de...
— Foi naquela tarde quando a nós ficamos sozinhos na prainha do rio. Cê não lembra?
— Mas não aconteceu nada...!
— Seu bobo, claro que aconteceu. Agora temos que casar.
Jonas ficou mais aturdido. Não havia acontecido nada, ela estava inventando.
Em casa, à noite, cabeça no travesseiro, tentava encontrar uma explicação. E um estranho pensamento varou-lhe a mente: E se for com outro?
O pensamento nessas horas é só de coisas ruins. Josias não cogitou de saber da verdade. Se ela contasse à mãe e ao pai, a coisa iria desandar. O pai, homem brabo, antes de perguntar qualquer coisa, iria mandar prendê-lo ou até matá-lo, por desonrar a filha.
Apavorado, fugiu naquela mesma noite. Deixou um bilhete para a mãe e o pai, pegou o trem da madrugada para São Paulo, onde desapareceu.
Chegou à capital, São Paulo, cidade grande, movimentada e alvoroçada: eram os primeiros dias da Revolução Constitucionalista. Uma confusão na qual Jonas foi envolvido.
Procurou trabalho, emprego, o que fazer. Inutilmente, pois as atenções de todos estavam para a guerra entre os estados. Sem pensar duas vezes, alistou-se como voluntário para combater com os soldados da revolução.
— Ninguém irá me procurar no meio dos soldados, pensou. Pelo menos tenho comida e um lugar prá dormir.
No final da semana em que havia sido incluído no batalhão, foi transferido para o sul do estado. Viajaram em caminhões abertos, eram uns cem soldados e acamparam na beira de um rio.
— Este é o rio Paranapanema — explicou o tenente Cabral, tão logo a tropa desceu dos caminhões. — Do outro lado é o estado do Paraná. Temos de defender esta posição contra as tropas que estão vindo do Rio Grande do Sul.
Armaram o acampamento. O sargento Ludovico era rigoroso nos treinos e mantinha todos ocupados nos exercícios e na vigilância. Os soldados destacados para a sentinela noturna deviam ficar atentos, embora estivessem cansados dos treinamentos. Muito cochilavam nos postos.
Josias era forte e resistente. Responsável, ficava alerta quando era destacado para a guarda. Nas noites em que ficava de sentinela, era encarregado de fazer a ronda entre os postos de vigilante e passava a noite indo de um lado ao outro, para ver se os companheiros estavam acordados e de olho na outra margem do rio.
Talvez procurasse, com as atividades do acampamento, esquecer a namorada. Era calado por natureza e não havia comentado com ninguém a sua fuga.
Uma tarde, no lusco-fusco do poente, estando de sentinela do acampamento, viu na beira do rio, um vulto que parecia caminhar pela areia da margem. Firmou a vista, enquanto o vulto se aproximava. Uma estranha luminosidade cercava o vulto: era a última claridade do dia que terminava e fazia parecer como se uma luz fraca estivesse acesa atrás da pessoa. Apontou a espingarda na direção da aparição, gritando ao mesmo tempo:
— Quem vem lá?
Não ficou tranquilo nem mesmo quando verificou que era uma mulher, a saia ampla balançando-se no ritmo do passo miúdo. Pareceu-lhe estranhamente familiar o caminhar, que lhe recordava alguém. Quando viu que, sim, pelo vestido e pelo jeito de andar, era uma mulher, quase deixou cair a espingarda, no susto que levou ao ver que o vulto NÃO TINHA CABEÇA!
Os cabelos da nuca ouriçaram-se e Jonas começou a tremer. E mais apavorado ficou quando viu que o vestido era idêntico ao que Mercedes usara na última vez em que estiveram juntos..
A aparição acenou para Josias. E desapareceu.
Trêmulo, encostou-se no tronco de uma árvore e teve que esperar alguns minutos para readquirir a coragem e caminhar até à margem, onde o fantasma aparecera e desaparecera.
Olhou para o chão, arenoso e macio, em busca de pegadas, mas nada viu que denunciasse a presença de alguém.
Nada revelou aos companheiros do batalhão. Se falo que vi um fantasma sem cabeça, vão gozar na minha cara. — pensou.
Na noite seguinte não estava encarregado da vigilância do acampamento. Entretanto, não conseguia dormir.
Foi o primeiro a ouvir o berro de Marcelino, vindo da beira do rio.
Levantou-se num salto, pegou a espingarda e correu para onde estaria Marcelino, que vinha disparado na sua direção.
— Um fantasma! Cruz Credo, Ave Maria! Creio Deus Padre!
— Calma, Marcelino. — disse Jonas, segurando o colega pelo braço. — Que foi que ocê viu?
— Uma coisa esquisita, uma mulher andando no meio do rio. — Marcelino falava em voz alta, quase gritando. — UMA MULHER SEM CABEÇA!
Num instante, todo o acampamento ficou sabendo do fantasma que aparecia no rio. Eram todos homens simples, crédulos e acreditaram na história contada por Marcelino. Jonas, entretanto, manteve-se de boca fechada.
Na noite seguinte, Zequinha Mango, cabra corajoso se oferecera para ser vigia.
— Se aparecer qualquer coisa andando pela areia, meto bala.
Não foi bem o que aconteceu. O fantasma reapareceu. Zequinha ficou paralisado, aterrorizado ao ver que o fantasma sem cabeça lhe acenava, como que o chamando para si.
— Ela tava no meio do rio, e me chamava... me chamava... tive de agarrar no tronco do barbatimão. Minhas pernas queriam correr prá lá!
— Ara, gente, ocês tão é vendo coisa. — O sargento Ludovico não acreditou no que seus camaradas diziam. — Hoje de noite eu mesmo vou ficar de sentinela na beira do rio, quero ver que negócio é esse.
Não deu outra. O fantasma apareceu ao sargento, que assim descreveu ao tenente:
— Pelas roupas, é uma mulher – só que não tem cabeça. Estava no meio do rio e estendia as mãos na minha direção. Não saía do lugar. Tive vontade de ir direção dela. Por trás tinha um brilho amarelado. Foram apenas uns segundos, talvez meio minuto. Depois, sumiu.
— Pois vamos investigar. — Determinou o Tenente Cabral, quando ouviu a narrativa do sargento. — Pode ser alguma armação do inimigo a fim de desmoralizar nossa tropa.
Nas noites seguintes a sentinela foi reforçada em todos os pontos da guarda. O tenente convocou o sargento Ludovico, Jonas, Marcelino e o Manga para ficarem na posição de guarda onde o fantasma da mulher sem cabeça tinha aparecido.
— Vamos ver se esse fantasma tem coragem de aparecer pro nosso grupo. — disse. — E se aparecer, vamos mandar bala, sem dó nem piedade.
De novo, e pela quinta vez, a aparição flutuou sobre o rio, e caminhou na direção do grupo. Todos ficaram aterrorizados, mas a força do grupo era forte, e alguns dispararam contra o fantasma.
Ninguém ficou sabendo se os tiros atingiram o alvo, pois, como das vezes anteriores, a mulher sem cabeça desapareceu em seguida.
No dia seguinte, Jonas pediu para falar com o tenente Cabral. Quando estavam só os dois, na barraca acanhada, ele revelou o segredo que mantinha desde a primeira noite do aparecimento do fantasma:
— Tenente, estou aqui fugindo de um enrosco danado. Minha namorada me falou que tava grávida, mas eu não acreditei. Fiquei com medo do pai dela, homem danado de brabo, me mandasse prender ou me matar. Fugi e me apresentei em São Paulo.
— Sim, soldado Jonas, encurta a história.
— Tenho uma coisa pra dizer pro tenente: a roupa daquele fantasma... é o mesmo vestido que minha noiva usava na última noite que a gente esteve junto.
— Você tem certeza, soldado Jonas?
— Sim, meu tenente. Acho que aconteceu alguma coisa com ela.
— E o que é que você quer que eu faça? — Perguntou o tenente.
— Eu queria uma licença pra ir ver...
—Uma licença? Impossível. Nossa tropa é reduzida, não podemos dispensar ninguém. Inda mais se for por conta da história de um... um... fantasma!
— Eu lhe peço de joelhos... — Jonas faz uma genuflexão.
— Levante-se, soldado Jonas! Olha a moral!
Um silêncio pesado caiu entre os dois homens. Depois de uns dois minutos, o tenente disse:
— Vou passar uma mensagem ao chefe do batalhão que está perto da sua cidade. Vou pedir que verifique se a moça ... sua noiva... está viva ou o que quer que possa informar. Me dê o nome dela, do pai dela, esse tal de Valadão, A cidade, já sei, fica perto de Rio Preto, na barranca do rio Paraná.
— Obrigado, meu tenente!
Após anotar o que precisava, o tenente dispensou o soldado.
— Pode retirar-se.
Batendo continência, Jonas saiu da barraca.
Apesar da iminência da tropa entrar em contato com o inimigo, o Tenente Cabral entrou em contato por do telégrafo militar, com Major Diogo, cujo batalhão estava sediado nas barrancas do rio Paraná, no oeste do estado.
— Vou mandar um soldado investigar essa história. – Prometeu o major ao tenente Cabral.
Uma ordenança foi enviada à cidade de Jonas, com a missão secreta de apurar a história misteriosa. E voltou como relato que foi transmitido para o Tenente Cabral:
“Havia ocorrido uma morte misteriosa em Santa Fé. Uma moça chamada Mercedes, filha do maior comerciante da cidade, tinha sido encontrada morta, a cabeça decepada e longe do corpo, numa mata perto da cidade.”
— Foi ela, sim, que morreu e agora está aparecendo aqui. — Disse Jonas, tão logo soube da notícia.
Assim, Jonas obteve uma licença e voltou à cidade da qual fugira fazia alguns meses. Chegou escondido e bateu na casa dos pais de madrugada, sob as sombras da noite.
Após se abraçarem e as explicações do rapaz sobre sua fuga, o pai lhe contou o que sabia do caso.
— Todos nós ficamos preocupados com seu desaparecimento, apesar do bilhete que deixou. Mercinha, a sua noiva, ficou desesperada. Naquela noite fatídica, parece que ia fugir de casa, levava uma trouxa de roupas na garupa do cavalo. Enveredou por uma trilha dentro da mata, bateu com o pescoço num galho baixo que atravessava a trilha. O galho era seco, cheio de nós, mas forte. No que ela bateu, um dos caroços do galho, um nó seco e com ponta, varou sua garganta de um lado ao outro. Cortou a cabeça da Mercinha.
Jonas ouviu calado. Nada falou do vulto da mulher sem cabeça, que, agora tinha certeza, era o fantasma de Marcinha.
— Quando eu saí, Mercinha procurou vocês, falou alguma coisa? — Jonas sondava, tentava queria saber se ela contara alguma coisa aos seus pais.
— Não, ela só chorou muito e saiu daqui de casa numa disparada. — A mãe respondeu.
Jonas explicou então porque tinha fugido. E quase num cochicho, explicou a história da gravidez da noiva.
— Mas, meu filho, isso foi uma covardia!
— Sei, pai, mas fiquei com muito medo do pai dela. Agora vou lhe pedir que indague por aí, se ela falou para o pai ou para a mãe, que estava grávida. Enquanto isso, enquanto não souber de tudo, vou ficar escondido aqui em casa.
No dia seguinte, o pai de Jonas visitou Valadão e Dona Mariquinha. Depois de apresentar os pêsames, embora um pouco tarde, contou a história do filho.
— Ele fugiu de medo do senhor, seu Valadão, quando a filha lhe contasse que estava grávida.
— Mas ela não falou nada disso, não senhor. — Disse Valadão.
— Ela não estava não, tenho certeza. — falou dona Mariquinha. — Se tivesse, ela tinha falado prá mim.
— Pelo visto, seu filho voltou pra Santa Fé?
— Prá ser sincero com o senhor, ele voltou sim. Está escondido, com medo do senhor.
— Pois diga a ele que nos visite e me conte a história dele. Se contar a verdade, prometo que nada farei contra ele. Apesar de que nossa filha fugiu e morreu por causa dele.
Jonas foi à casa de Valadão e contou sua história. A invenção de Mercinha que estava grávida, a certeza dele que não tinha feito nada come ela, se ela tivesse grávida, ele não era o pai.
— Fugi de medo do senhor, seu Valadão, quando soubesse da história de Mercinha. E aqui estou contando tudo.
— Ela ficou desesperada quando você sumiu. Não parava em casa, ficava perguntando para Deus e todo mundo se sabiam onde você estava. Mas grávida ela nunca me falou. Não estava não. A gente que é mãe sabe dessas coisas
— Juro que tudo que falei é verdade. Juro por...
— Você não precisa jurar, não. Reconheço que a Mercinha era muito atirada, moderninha, cheia de novidade e de ideias.
— E como foi que ela morreu. – Pediu Jonas.
O pai esclareceu:
— Na tarde daquela noite ela foi à chácara do tropeiro Mizael, que tem bons cavalos de sela e uma tropa grande de mulas. Encomendou pra ele que deixasse um bom cavalo arreado, que ela queria dar uma volta para espairecer. Ela tinha desses repentes e Mizael não desconfiou de nada. E então, fugiu também. Não sabemos se ela tinha descoberto o seu paradeiro, ou o que pretendia. Não falou nada, num deixou nem um bilhete. No dia seguinte, quando nós vimos que ela não tinha dormido em casa, começamos a procura. Mizael veio me contar do cavalo que aprontara para Mercinha. Não demorou muito para agente encontrar a Mercinha... morta ... sem cabeça...
Valadão não conseguiu segurar as lágrimas. Dona Mariquinha já tinha molhado um lenço, de tanto chorar.
— O cavalo tinha saído da mata e pastava, bem visível, num descampado.
<><><>
Josias voltou para o batalhão. Ninguém mais dera notícias do fantasma da mulher sem cabeça.
Ela queria que eu soubesse do acontecido- Pensou Jonas.
O batalhão foi removido para a região de Piratini, onde as tropas revolucionárias entraram em choque com as forças bem armadas do governo. O entrevero foi rápido, pois, mal municiados e em numero inferior, os soldados paulistas foram vencidos.
Existe o registro, feito pelo tenente Cabral, um dos poucos sobreviventes daquele combate, sobre a bravura do soldado Jonas:
“Virou um soldado do outro mundo. Atacou com fúria e destemor. Causou uma devastação entre a soldadesca inimiga. Parecia que queria morrer! Vi quando um a baioneta de um gaúcho cortou sua garganta, e a cabeça rolou prá longe.”
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 27 de março de 2013
Conto # 777 da série 1.OOO HISTÓRIAS