775-PESCARIA NA LAGOA PRETA-Memórias do autor
Era carnaval e Toninho foi passar os feriados na Fazenda Coqueiral.
No domingo ele e o primo Natal saíram com as varas de bambu fino a fim de pescar na Lagoa Preta. A região de Ipoméia, onde ficava a lagoa, era de pastos e o terreno, subindo suavemente, chegava até a serra, em ondas de capim jaraguá, com alguns trechos ruins de barba-de-bode.
Na paisagem iluminada pelo sol quente de verão podiam ser vistas manchas de um verde escuro: eram as matas ciliares, acompanhando os córregos e o entorno da lagoa.
—Vocês levam estes sanduiches de pão com salame e voltam para o almoço, ouviram? — Tia Elvira, por mais cuidados que tinha com o filho e sobrinho, não podia acompanhar a intenção deles.
— No caminho a gente chupa manga, ainda tem muita nas mangueiras dos pastos. — disse Natal.
E lá foram os dois garotos, treze e quatorze anos, como se fossem para uma pescaria de gente grande. Ambos claros, loiríssimos, pareciam irmãos. Toninho, da cidade, ansiando por liberdade, tirou a camisa e expôs o corpo ao sol.
Pelo caminho, encontraram as mangueiras carregadas de frutas amarelinhas ou já com tons de laranjas, de tão maduras. Fartaram-se chupando mangas. Já estavam na lagoa há um bom tempo, haviam comido a merenda quando ouviram ao longe, bem longe, os sinos da igreja da cidade, anunciarem o meio dia.
— Pombas, até agora não pescamos nada. — disse Natal. — Vamos embora?
— Estou com minhas costas ardendo. Vamos dar um mergulho.
Foram brincar nas águas rasas da lagoa. Uma folia refrescante, um jogando água no outro, mergulhando, correndo dentro do pequeno lago.
Estavam arranjando a tralha de pesca — apenas varinhas de bambu e anzóis olho de mosquito — quando ouviram tropel de cavalos.
— Vem gente.
— Vamos esconder.
Não estavam fazendo nada de proibido, mas os garotos nem cogitaram disso. Entraram pelas moitas de capim jaraguá, de mais de metro e meio de altura. Quietos, viram quando apareceram dois cavaleiros.
Natal reconheceu um deles:
— É seu Zoroastro, dono da fazenda. — Cochichou.
— Xi, tamos ferrados! — respondeu Toninho, também em voz baixa.
— Cala a boca.
As montarias viam em passo lento, parecia que o fazendeiro estava passeando. Dirigiu-se para a touceira onde os garotos estavam escondidos. Seguido de perto por um negro, montado numa besta que não parava quieta nem um instante.
Era realmente o proprietário daquelas terras. Filho de imigrantes italianos, era grande, encorpado e o rosto muito vermelho. Usava um chapéu de aba larga e montado num baio também enorme, parecia aos dois garotos um daqueles caubóis das fitas do cinema. Os garotos ficaram quietos, com medo de serem descobertos.
Mas o fazendeiro não era nada do que os meninos temiam. Era dono de centenas de alqueires ali na serra da Ipoméia, criador de gado e dono de plantações de café. Proprietário de casa na cidade, onde tinha muita influência, pois conhecia todo mundo da região de suas terras e também na cidade. Ajudava quem precisasse de auxílio, era caridoso e religioso. Fora o grande responsável peã reforma da Igreja de Nossa Senhora da Abadia,
Mas os meninos não sabiam de nada disso. Viam um cavaleiro gigantesco aproximando-se do lugar onde estavam escondidos.
— E ai, meninos? Pescaram muito? — Disse o cavaleiro, sem olhar diretamente para os dois pescadores.
Silencio
— Podem sair da moita. Sei que vocês tão aí.
Os meninos apareceram. Sem jeito, com medo, tremiam ante a imponência do cavaleiro.
— Então, pegaram muito bagre?
— Não... não... senhor. A gente num pegou nem lambari.
O cavaleiro parecia estar gozando com o medo dos meninos. Ou eles assim pensavam.
— Então, voceis sabem quem eu sou?
— É o dono fazenda aqui. — respondeu Natal
— Pois é... e vocêis dois pescando sem minha autorização.
Tirou o cigarro de palha da boca e o esfregava entre o polegar e o indicador, lentamente.
— É... a gente tava... — Contoninho.
— Nois não tava fazendo nada, não senhor. Nem pescamos nada.
— Não mente
— Não... senhor, pode ver nosso embornal. — E Natal abriu o pequeno saco de pano, vazio.
Os cavalos pisoteavam o chão, fazendo lama. O companheiro do fazendo, um preto de cara fechada, nada falava.
De repente, o cavalo do fazendeiro empinou, assustado com o voo rasante de um pássaro.
— Sossega, Calunga!
O cavalo ficou quieto. Os meninos cada vez mais com medo.
— Ceis já almoçaram?
— Não senhor.
— Tão com fome, não é mesmo?
— Estamos... sim... senhor.
— Então vamos prá fazenda.
Toninho cochichou para o primo:
— Puxa, e agora, ele leva a gente pra fazenda prá prender a gente ou bater... estamos perdidos.
— Vamos, não temos a tarde toda. Cada um vai na garupa. Ocê – apontou para Toninho com o chicote – vem na minha garupa.
Titubeante Toninho disse:
—Não precisa...
— Vamos, sobe, anda!
Toninho montou na garupa. O primo, vendo que a coisa era pra valer, subiu logo na garupa do burro do negro.
E lá foram. Toninho olhava de vez em quando pra traz pra ver oprimo na outra montaria. O primo parecia estar conformado.
Num trote vagaroso, chegaram à casa da fazenda.
O dono gritou:
— Amélia, trouxe uns convidados pro almoço.
No alpendre da casa apareceu uma mulher gorda, lenço na cabeça, rosto corado.
— Pensei que você nunca mais ia chegar. Já passa do meio dia e...
— Põe mais dois pratos na mesa, esses meninos vão almoçar com a gente.
Os dois garotos apearam e subiram os degraus da escada, seguindo o fazendeiro. Nada falaram.
— Vão lavar as mãos antes de sentar à mesa. — Ordenou o fazendeiro. — Ali naquela bacia.
Os meninos lavaram as mãos, enxugaram e ficaram de pé, esperando.
Seu Zoroastro, já sentado à mesa, disse:
— Me conte como se chamam.
— Eu.. sou... Toninho
— E eu sou o Natal.
— Bom, sentem-se aí, que a comida já vem.
E veio a comida. Famintos, os dois comeram pra valer.
— Vocês moram na cidade?
— Eu moro, disse Toninho.
— Eu moro no sitio do meu pai.
— Quem é seu pai:
— Chama Alpineu.
— O Alpineu da olaria! Ora se não conheço ele. Ele também me conhece. Vocês estão fugidos?
— Não a gente falou que vinha pescar e que voltava ante do almoço.
— Então seu pai e sua mãe devem estar preocupados...
Só depois que comeu bastante e viu que o fazendeiro nãoia lhes fazer mal foi que Toninho começou sentir o ardido das costas. Ardia e coçava.
Dona Amélia percebeu que o menino se coçava muito.
— Que foi que houve?
— Tava sem camisa e o sol tava quente
— Deixa ver suas costas
Toninho tirou a camisa.
— Menino de Deus! Cê tá queimado demais. — E gritando pra dentro: Ordelia! traz a arnica alcanforada.
— A empregada apareceu com um vidro cheio de um liquido amarelo.
— É arnica com cânfora. Vou passar prá te aliviar.
Toninho sentiu a frescura e um alivio imediato. Parecia que ela passava gelo nas costas.
— Obrigado, dona.. Amélia..
— Bom, falou o fazendeiro depois que Toninho vestiu a camisa. — Vou levar vocês de volta. Vamos lá no curral.
Foram para o curral, onde um automóvel estava estacionado num telheiro.
|O fazendeiro mandou os dois entrarem, ajeitarem as varas no banco, e saiu dirigindo.
O Fordinho corria pelas estradas esburacadas e em menos de meia hora chegaram à Fazenda Coqueiral.
O pai de Natal chegou até à porta da casa ao ouvir o barulho do carro e as duas buzinadas.
— Seu Zoroastro! Boa Tarde! Vamos apear.
— Há Quanto tempo, hein, Alpineu?
Abraçaram-se efusivamente.
— Trouxe os dois meninos, seu filho e seu sobrinho. Estavam pescando na Lagoa Preta.
— Vocês dois, seus merdinhas! — foi gritando Tio Alpineu com os garotos.
— Não zanga com eles não. Estavam apenas pescando na Lagoa Preta e eu levei eles pra almoçarem lá em casa.
Entre uma conversa e outra, Zoroastro disse para Tia Elvira:
— Seu sobrinho tá com as costas muito queimadas de sol. Amélia já passou arnica alcanforada, é bom passar mais.
Graças à recomendação do Zoroastro e às costas vermelhas de Toninho, não houve zanga nem reprimenda, Tia Elvira passou uma pomada nas costas de Toninho, quando ele foi deitar-se não sentia mais nada.
Naquela noite, Natal e Toninho prometeram-se mutuamente:
— Pescaria na Lagoa Preta, nunca mais!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 27 de fevereiro de 2013
Conto # 775 da Série 1.OOO HISTÓRIAS