774-A VIDA SOFRIDA DE JECA TATU- Pastiche

A jardineira parou rente à porteira da Fazenda Tremembé, a poeira da estrada de terra envolvendo-a por todos os lados. Era um veículo pequeno, com dez ou doze lugares, um alto falante na capota e pintada com desenhos de palhaços, trapezistas, cavalos e elefantes, nas cores amarelo, vermelho e verde. Em grandes letras estava escrito CIRCO LA PAZ.

Era por volta do meio dia e a família de Jeca Tatu estava almoçando. Alertada com o barulho das buzinadas, correram todos ao alpendre, de onde viram, emergindo entre a poeira, a pitoresca carruagem motorizada.

— Jeca, mas o que é isso? — Perguntou dona Salvinha ao marido.

— E eu sei lá, mulher! — Respondeu. E gritou para o motorista:

— Vamos chegando!

Fazia alguns meses, talvez seis, talvez sete, que Jeca Tatu havia recebido a visita do senhor Mazzaropi. Ao ver as palavras Circo La Paz na jardineira, lembrou-se da proposta que ele lhe havia feito. Como também se lembrou do convite para assistir a estreia de uma peça de teatro no circo.

O motorista desceu, passando as mãos pela roupa a fim de tirar a poeira. Despachado, subiu em poucos lances os degraus para chegar até o alpendre, que era uma sacada alta. E foi logo cumprimentando:

— Bom dia prá todos. Sou Genival e estou aqui por mandado do Sr. Mazzaropi, para levar vocês, a família para assistir a estreia da peça do Jeca.

— Bom dia, seu Genival. Mas antes, vai almoçar com a gente. A comida tá na mesa.

Entraram todos. E enquanto comiam, conversavam.

— Então é hoje...! — Jeca estava gostando da situação. — Mas que esperto é esse senhor Mazzaropi. Num faz nem seis meses que esteve aqui, e já tá tudo pronto.

— Ô marido, não esquece o combinado com dona Benta, hein?

— Ah! É mesmo. Olha, seu Genival, eu prometi levar também dona Benta, proprietária do Sitio do Pica-Pau Amarelo. Será que dá pra ela ir com a gente, na jardineira?

— Mas claro. Manda avisar, que eu passo lá pra pegar ela também.

Não havia escurecido quando Jeca e família mais Dona Benta chegaram ao local onde estava armado o Circo La Paz. Foram recebidos com alegria pelo senhor Mazzaropi, que os convidou para conhecer o circo.

— Aqui temos as gaiolas com os animais, ali está o elefante, e mais além, nossos camarins.

— O elefante... Não é brabo? — perguntou dona Salvinha.

— Não, é domesticado. Tem um tratador que veio com ele da Índia. Mas mesmo assim, ele está amarrado naquele toco forte ali, tão vendo?

E assim passaram algumas horas. Foram apresentados ao dono do circo e ao pessoal todo. E Mazzaropi aproveitou para contar um pouco da sua própria história.

— Sabem, eu fui criado desde os dois anos aqui mesmo, em Taubaté. Desde criança gostei de contar histórias engraçadas e fazer palhaçadas. Imitava meu avô, que morava em Tremembé, aqui pertinho, quando ele ia às festas do bairro e fazia animações. Mas meu pai não gostava preocupado com minha educação, mandou-me para Curitiba, onde morei alguns anos com um tio. Estava com quatorze anos quando voltei pra São Paulo, sempre sonhando ser artista de circo. Tinha quinze anos quando conseguir entrar na caravana do Circo La Paz. Fazia de tudo no circo e nos espetáculos, entre os intervalos das apresentações, eu contava causos e anedotas, fazia micagens e palhaçadas. Mas o ganhame era pouco, recebia apenas uma pequena gratificação. Aí, voltei a morar com meus pais, aqui em Taubaté. Isso foi em 1929, três anos atrás. Então, comecei a trabalhar numa tecelagem e nos sábados e domingos atuava numa escola do bairro onde a gente morava. Mas não aguentei ficar longe do circo e faz apenas dois anos, voltei de novo pro circo.

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O circo estava cheio. As arquibancadas lotadas estralavam de vez em quanto. Na seção das cadeiras, não havia mais lugar vago. O setor chamado de “camarote”, reservada para convidados, também estava (com uma única cadeira vaga) todo ocupado. Jeca e família, Dona Benta e as altas autoridades da cidade de Taubaté, lá estavam presente. No último momento, chegou o ocupante da cadeira vaga: um senhor baixo, moreno, cabelos grisalhos e rebeldes, as sobrancelhas negras e muito grossas encontrando-se na ponte sobre o nariz. Bem trajado, chapéu palheta, elegante e discreto. Um sussurro de admiração percorreu pela plateia, quando ele chegou com passos ágeis. Dona Benta sussurrou para Jeca Tatu:

— O Senhor Monteiro Lobato...

O espetáculo foi um sucesso. Depois das apresentações dos animais selvagens e domesticados, da bailarina que dançava sobre o dorso de um cavalo, os trapezistas e malabaristas, as palhaçadas dos intervalos, veio a peça.

A banda atacou uma música muito nostálgica, e o diretor do espetáculo (que era também o dono do circo) anunciou:

— E agora, Senhoras e senhores! O Circo La Paz tem o prazer de apresentar a peça A VIDA SOFRIDA DE JECA TATU. É a estreia. É também a primeira peça escrita pelo nosso grande artista senhor Amácio Mazzaropi, exclusivamente para nosso Circo La Paz.

Grande barulho causado pelos aplausos e pelo troar dos tambores, seguido da música em passo de Grand´Overture.

As cortinas se abriram e as primeiras cenas se sucederam. Durante trinta minutos, os artistas contaram a parte mais triste da vida do Jeca: doente, atacado de amarelão, sem disposição para nada, vivia uma vida miserável na sua tosca choça de sapé e pau-a-pique.

No intervalo de alguns minutos, não havia distrações no palco. Muitas pessoas aproveitaram para esticar as pernas, comprar pipocas e conversar com os conhecidos.

Os que estavam no camarote aproveitaram para cumprimentar o ilustre escritor, autor da primeira história de Jeca Tatu, o criador mesmo do nome, na qual a peça tinha sido inspirada. Homem delicado no trato com as pessoas abraçou a todos. Inclusive Dona Benta, Jeca e toda a família, com quem trocou afáveis palavras de homem sensível e elogios rasgados à peça que estavam assistindo.

Veio o segundo ato, e a vida de Jeca tomou novo rumo, quando, curado das mazelas de que padecia, tornou-se saudável, trabalhador, homem de tino e sagacidade. Mudou sua vida, a vida da família e até mesmo a vida do escritor, pois a história do “Jeca Tatuzinho“ teve mais de oitenta milhões de exemplares distribuídos gratuitamente por todo o Brasil, e foi, em seu tempo, a obra mais difundida em todo o país.

Quando a peça terminou e antes que os assistentes saíssem, Mazzaropi, ainda com os trajes de Jeca Tatu, que ele interpretara à perfeição, no palco, falou para a plateia:

— Prezados senhores, respeitáveis damas! É com prazer que registramos a presença dos senhores Jeca Tatu e do escritor senhor Monteiro Lobato, que escreveu a biografia do Jeca e sobre a qual eu tomei a liberdade de escrever esta peça que os senhores acabaram de assistir.

Palmas estouraram de todos os lados. O escritor levantou-se e acenou à multidão. Jeca, muito acanhado, também se levantou após uns cutucões de dona Benta.

— Convido os dois ilustres senhores a virem até o palco para receberem nossos aplausos.

Novas palmas enquanto os dois foram até o palco. A multidão não cansava de aplaudir. A Mazzaropi juntaram-se o diretor do circo e todos os artistas, a fim de cumprimentarem Jeca Tatu e Monteiro Lobato.

Dona Benta e Salvinha enxugavam os olhos, emocionadas.

Foram bem uns quinze minutos de festa: os cumprimentos no palco, e depois, à saída do circo, onde todos queriam apertar as mão e abraçar os três homens: Jeca Tatu, o herói na peça e na vida real; Mazzaropi, o Jeca no palco e Monteiro Lobato, o imortal criador de centenas de personagens da literatura, entre eles o inesquecível e exemplar Jeca Tatu.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 21 de Fevereiro de 2013

Conto # 774 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/04/2015
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