773-MAZAROPPI VISITA JECA TATU- Pastiche
— Ô de casa! — gritou o chegante, assim que desceu do jipe empoeirado, estacionado próximo à porteira que dava acesso à Fazenda Tremembé. Alto, bem vestido, olhos puxados, boca grande encimada por um bigode cujas pontas desciam, fechando a boca como um par de aspas. Sobrancelhas cerradas como que a proteger os olhos também grandes. Na cabeça, uma palheta branca enfeitada com um raminho e alguns grãos de café vermelhos.
— Ô de fora! — Veio a resposta lá de dentro, antes mesmo de Jeca Tatu assomar à varanda da casa, distante poucos metros da porteira. Era mais ou menos dez horas da manhã, o sol estava quente e Jeca apressou-se em abrir a porteira.
Estendendo a mão para o outro, cumprimentou com cordialidade e um sorriso.
— Vamos entrando... O sol aqui fora está de rachar.
O recém-chegado tirou o chapéu mesmo antes de apertar a mão de Jeca.
— Bom Dia, seu Jeca. Disse.
Subiram a meia dúzia de degraus, passaram pelo alpendre, que era na realidade uma larga sacada, protegendo a frente da casa do calor do sol.
— O senhor me desculpe, chegar assim de supetão.
— Acho que o senhor me conhece, mas nunca lhe vi mais gordo. –Jeca tinha um modo franco e direto de dizer as coisas.
—Ah, claro. Já ouvi falar muito do senhor. Li até sua história num livrinho do Sr. Monteiro Lobato. — Falava com desenvoltura, dava mostras de educação. — Meu nome é Amacio Mazzaropi.
— Se veio a fim de comprar minha fazenda, já vou falando: não tou vendendo, não. — Jeca foi incisivo. — Já apareceu por aqui uma batelada de gente querendo comprara Fazenda Tremembé, mas num vendo não senhor.
—Não, seu Jeca, não sou comprador de fazendas, não senhor. Eu sou é artista de circo. Faço papel de palhaço, de caipira, esses personagens que fazem o pessoal cair na gargalhada.
— E no que posso ajudar o senhor? Acaso o jipe quebrou?
Mazzaropi deu uma risada. As grossas sobrancelhas levantaram-se e a boca escancarou, mostrando alvíssimos dentes.
— Não, seu Jeca, é que o circo onde trabalho está montado aqui perto, numa praça de Taubaté, e aproveitei para vim lhe conhecer. Como lhe disse, o senhor é homem famoso, sua história serve de exemplo prá muita gente que anda desanimada da vida.
— Ah, bom. Então fico muito contente em receber sua visita. Deixa eu chamar minha mulher.
Jeca Tatu levantou-se e dirigiu-se para a porta que dava para a cozinha.
— Salvinha, Tem visita importante da cidade. Vem aqui na sala, quero te apresentar. E traz um cafezinho.. cum broinha.
— Pois é, seu Jeca, — prosseguiu Mazzaropi— eu vinha vindo ai pela estrada e pensando. “Vou conhecer um homem realizado, que não era nada na vida e que hoje é um grande fazendeiro, com boas terras, gado de primeira, cafezal”. Então me estalou uma ideia: fazer uma peça pro circo, baseado na sua vida.
— Ara, seu Mazzaropi, também não é prá tanto. Tá certo, eu era um homem doente, opilado, e por conta disso não ia prá frente na vida. Mas quando tomei remédio, o amarelão desapareceu e eu fiquei forte e trabalhei com vontade. Num tem nada de diferente, não. Aliás, eu tô convencido que a saúde é a coisa mais importante da nossa vida. Sem saúde, agente num é nada.
— Verdade verdadeira. Mas tem muita gente por aí que tem saúde e não conseguiu subir na vida como o senhor.
Dona Salvinha chegou trazendo uma bandeja com bule de café, xícaras e cestinho com broinhas de fubá.
As apresentações feitas, os três se se sentaram e o Jeca disse:
— É o trabalho, seu Mazzaropi. Nada resiste a força do trabalho.
— Pois então, é sobre o que o senhor passou que quero fazer a peça de teatro para o circo. O que para o senhor não tem importância, é um exemplo para muita gente. A peça que estou pensado vai mostrar tudo isso.
— Uai, mas intão porque o senhor não faz o tal teatro?
— É que precisava primeiro conversar com o senhor, pedir autorização para usar o seu nome.
— Uai, se for só isso, tá autorizado.
Depois de muito conversa Mazzaropi levantou-se e pretendeu despedir-se. Mas dona Maria interrompeu:
— Ah, não, o senhor não vai sair assim sem mais nem menos. Tá na hora do almoço e o senhor fica prá almoçar com a gente.
—Mas, dona Salvinha... (1)
—Num tem mais nem meio mas. Já mandei a minha filha prepará um frango com quiabo especial pro senhor.
Almoçaram, e durante o almoço Mazzaropi não poupou elogios à comida, à dona casa, à família de Jeca, a tudo, enfim. Era um homem entusiasmado e sincero, e seus elogios eram francos e cordiais.
Finalizado o almoço, despediu-se, prometendo:
—Quando a peça for encenada, mando lhe buscar, seu Jeca, o senhor e toda a família, prá assistir.
E partiu, dirigindo o jipe que desapareceu mergulhado na poeira da estrada.
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Naquela tarde, Jeca ficou matutando sobre a visita. Falou com a mulher:
— Num tou arrependido de ter falado daquele jeito com o senhor Mazzaropi. Mas vai que ele inventa coisas sobre nossa vida. Eu devia ter pedido um tempo pra pensar.
E a esposa:
— É, cê tem razão, marido. Purquê cê num tira uma opinião com Dona Benta?
— É mesmo. Ela pode me aconselhá, se fiz bem ou mal.
Na manhã seguinte, eis o Jeca Tatu visitando Dona Benta, no Sítio do Pica-pau Amarelo, que confrontava com sua propriedade.
— Pois é, agora tou com a pulga atrás da orelha. — Concluiu, após contar com detalhes a visita que recebera do senhor Mazzaropi.
A velha senhora, que quase nunca saia de seu sítio, mantinha-se atualizada com as notícias e os acontecimentos. Lia muito e tinha uma assinatura do jornal O Estado de São Paulo. Simples, afável, vivia para a leitura e para os netos e personagens do Sítio, que seu amigo, o escritor Monteiro Lobato, colocava nos livros com histórias para crianças, mas que muita gente grande gostava também.
— Já ouvi falar desse circo. O palhaço Mazzaropi é muito cotado. Parece que um dos mais engraçados do Brasil. Aliás, o circo está mesmo armado em Taubaté. Quem sabe se a gene não vai lá uma tarde desabado ou domingo, assistir a matinê?
— Mas... o que a senhora acha da proposta? —Jeca mostrava-se preocupado.
— Ora, Jeca, acho que não tem nada demais. A vida do senhor foi muito sofrida, mas agora o senhor é um homem próspero, a família é um exemplo. Merece mesmo ser contada para todo mundo saber. Não tem nada que o senhor Mazzaropi possa inventar em seu desfavor.
— Agora tou mais aliviado.
Despediu-se, prometendo:
— Quando o senhor Mazzaropi vier me buscar pra assistir a tal peça, como ele prometeu, quero que a senhora vá comigo.
— Vou, sim, seu Jeca. — Dona Benta aceitou o convite de bom grado.
— Pois, então, tá combinado.
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(1) – Rosalva de Souza, ou Dona Salvinha- ver conto #600- A Família de Jeca Tatu
A Seguir: A Vida de Jeca Tatu no Palco do Circo.
Antonio Roque Gobbo
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2013
Conto # 773 da Série 1.OOO HISTÓRIAS