FILHOTE DE CRUZ-CREDO
Quando Roberta era pequena, era tão feia que parecia um filhote de cruz-credo. Era magricela, usava óculos com lentes grossas, tinha o cabelo curto e cheio, e os dentes tortos. Seus pais, preocupados com sua falta de apetite, chegaram a consultar diversos pediatras para saber porque ela comia tão pouco. Após vários exames, os médicos chegaram à mesma conclusão. Não havia nada de errado com ela. Era uma criança absolutamente normal embora estivesse magra. Apesar de todos os profissionais garantirem que, com o tempo, ela iria encorpar e mudar, a família custava a crer que aquela garotinha diferente viraria uma moça linda. Só mesmo um milagre poderia operar tal transformação.
Na escola, Roberta sofria bullying. Seus apelidos eram filé de borboleta, sashimi de grilo, tripa, folha seca, graveto ambulante... A menina procurava não demonstrar o quanto ficava magoada com a chacota, mas às vezes, era difícil segurar as lágrimas. Para compensar, Roberta dedicou-se aos estudos. Era uma aluna disciplinada e inteligente, o que acabou por lhe granjear prestígio junto aos professores, mas ao mesmo tempo, despertou o ciúme em algumas crianças, principalmente em Paula.
Paula era uma menina loura, de pele clara e olhos azuis. Bastante falante, tinha muitos amigos. Seus únicos problemas eram o peso e as notas. Não chegava a ser gorda, mas estava cheinha, contudo, ninguém ousava zombar dela. Quanto à parte acadêmica, seu desempenho era apenas regular. Não era uma questão de dificuldade de aprendizagem, mas sim, de preguiça. Paula preferia ver televisão a ler os livros recomendados, e quase nunca fazia os deveres com atenção. Além disso, tinha o curso de inglês, balé, enfim, sobrava pouco tempo para estudar. Foi então que cansada de ouvir tantos elogios a Roberta, teve uma ideia.
No dia seguinte, Paula estava jogando queimado, durante o recreio, quando simulou ter torcido o pé. Chorou, gemeu, fez uma cena, e acabou dizendo que não tinha condições de continuar porque seu tornozelo doía. Alguns colegas insistiram para que fosse levada à enfermaria, mas ela lhes assegurou que não havia necessidade. Paula pediu só que arrumassem gelo na cantina, e que a ajudassem a ir para a sombra, onde poderia sentar e ver o resto da partida. Os amigos levaram-na para perto de Roberta, que estava ali olhando em silêncio. Após alguns minutos, Paula queixou-se de calor e de sede. Roberta prontamente se ofereceu para trazer um copo de água, e esse foi o início da amizade entre as duas.
Para Roberta, aquela aproximação significou muito. Pela primeira vez na vida tinha uma amiga! De mais a mais, Paula a protegia porque não permitia que caçoassem dela. Os apelidos acabaram, e a menina sentia-se imensamente grata.
Por outro lado, Paula se relacionava com Roberta por mero interesse. Não só a colega fazia o grosso dos trabalhos em grupo, como prestava alguns “serviços”: ela ia à papelaria, tirava xerox, encapava os livros...
O tempo passou, e as duas moças prestaram vestibular para psicologia. Roberta já não estava tão magra. Passou a usar aparelho e aprendeu a domar os cabelos, mas ainda estava longe de parecer bonita. Por sua vez, Paula havia conseguido se livrar do peso extra e estava, talvez, em sua melhor forma. Com menos de um mês no campus, Paula se tornou uma “it girl”, ou seja, um ícone da moda e da beleza. O que os colegas não entendiam era como uma garota tão linda andava com um tribufú daqueles.
Embora Roberta estivesse começando a notar que, na verdade, Paula sempre fizera corpo mole, ela ainda conseguia desculpar o comportamento da amiga. Coitada, tinha tantas atribuições! Na faculdade, fazia parte do grêmio. No clube, era uma espécie de "promoter" que fazia a lista dos rapazes e moças endinheirados que abrilhantariam as festas. Sem falar no blog que criara, onde escrevia sobre cuidados com a pele, com os cabelos, e onde também dava dicas sobre roupas. Era coisa à beça! Roberta também não podia sequer se queixar, afinal, quando não estava às voltas com os trabalhos e seminários, tinha sempre um lugar para ir com a amiga.
No terceiro ano do curso, Paula foi a uma festa sem Roberta. Lá conheceu Felipe, um rapaz um pouco mais velho, e com grande futuro nas empresas do pai. Os dois dançaram o tempo todo e, no final da noite, já se consideravam namorados. Paula contou para Roberta que havia encontrado um cara muito legal, mas não entrou em detalhes.
Na primeira vez que Roberta viu Felipe, ficou fascinada. Louro, alto, de olhos claros e porte atlético, Felipe era um homem bem atraente, e ainda por cima, rico. Chato foi constatar que ele estava caidinho por Paula. Quando Roberta lhe foi apresentada, ele se mostrou indiferente. Por esse motivo, Paula sentia-se despreocupada em relação aos dois. Ela sabia que Felipe jamais a trocaria por aquela bruxa.
Roberta ficou desolada com a chegada do rapaz. Além daquele Apolo a ignorar, Paula não tinha mais tempo para ela. Só durante as aulas é que as duas ficavam juntas.
Um dia, Roberta foi até a casa da amiga para devolver uma blusa. Ao chegar lá, a mãe dela estava de saída, mas falou que ela devia ir até o quarto, pois a filha estava fazendo uma arrumação. Quando Roberta estava subindo a escada, ouviu uma voz masculina. Era Felipe. Ela se aproximou da porta bem devagar, procurando não fazer barulho. Depois, parou e ficou ouvindo.
- Esta foto foi tirada na festa dos meus quinze anos. – disse Paula.
- Você está linda como sempre, amor, mas essa sua amiga está um horror! Como era feia, a coitadinha! – comentou Felipe. Aliás, ela continua bizarra até hoje. Eu não entendo a amizade de vocês.
- Querido, eu sou uma pessoa muito caridosa. Fiquei com peninha dela. Ela não tinha amigos, era discriminada por todos e...
- Paula, pode parar. – interrompeu Felipe. Já te conheço o suficiente para saber que aí tem deboche. Desembuche!
- Tá certo. Eu já tava cansada de ouvir os professores babando o ovo daquele filhote de cruz-credo. Ao mesmo tempo, nunca tive muito saco pra ficar estudando. Então, resolvi que seria amiga dela, e me dei bem. Em troca de umas migalhas de atenção, a bocó fazia os trabalhos da escola para mim. Até hoje é a mesma coisa. Fora o fato que ainda trabalha de graça, pois marca hora no cabeleireiro, pega roupa na lavanderia, passeia com o meu cachorro... Enfim, a bobalhona é pau pra toda obra.
Roberta não aguentou escutar nem mais uma palavra. Desceu os degraus com cuidado, abriu a porta da rua, e saiu. Quando chegou ao seu apartamento, chorou até se acabar. Sua “amiga” era uma dissimulada que havia se aproveitado da sua ingenuidade. Roberta pensou que iria morrer de ódio, mas como no final de semana as duas não se viram, ela teve tempo para se acalmar. Ela tinha sido trouxa, mas aquilo não ia ficar assim. Ah!... Mas não ia mesmo! Ela saberia esperar a hora certa para dar o troco.
Naquela mesma semana, Felipe veio com uma novidade. Havia resolvido fazer um MBA em Boston antes de assumir um novo cargo na matriz. Paula imediatamente tratou de arrumar um intercâmbio, e seu pai concordou que ela fosse para os Estados Unidos no segundo semestre.
Em solo americano, o relacionamento do jovem casal se aprofundou embora, às vezes, Felipe se sentisse sufocado pelo ciúme da namorada. Apesar disso, como tinha mais um ano pela frente antes de poder voltar ao Rio de Janeiro, Felipe aceitou a sugestão de Paula, e os dois resolveram se casar por lá.
Como sempre, Paula dobrou os pais. Há muito tempo que ela vinha sonhando com um casamento diurno em um resort, e assim seria feito. Paula também decidiu que em vez de ter padrinhos e madrinhas como é costume no Brasil, ela teria uma “bridesmaid”, isto é, uma dama de honra. Enquanto isso, Felipe escolheria um único amigo para ser seu padrinho. Era perfeito. Roberta seria sua dama. Feia como era jamais ofuscaria o brilho da noiva. Era bem verdade que Roberta havia mudado um pouco. Não estava tão magra quanto antes, mas pelo que Paula via pelo Skype, a garota continuava a usar aparelho e óculos.
Roberta mal pôde acreditar quando Paula contou sobre a sua participação no casório. Além disso, ela desconfiou quando a amiga enviou os croquis de três modelos diferentes para que ela escolhesse qual usaria. Paula afirmou que só fazia questão que o vestido fosse cor de rosa chá. Roberta achou aquilo muito esquisito. Primeiro, porque normalmente é a noiva quem escolhe tudo. E em segundo lugar, porque Paula não gostava de delegar poderes. Ela devia estar tramando alguma coisa ou então, estava se sentindo mega confiante.
Roberta aceitou o convite, mas impôs uma condição. Ela seria dama contanto que pudesse chegar na véspera do casamento, e que pudesse voltar para casa logo após a cerimônia. O problema é que a data do evento coincidia com as provas finais do curso. Paula achou um absurdo a garota fazer exigências, mas na falta de outra feiosa, tinha que ser ela mesma.
Felipe ficou incumbido de buscar Roberta. Ele estava bastante mal-humorado. Não só teria que passar seu último dia de solteiro ao lado de uma “mocoronga”, como também já havia levado uma patada da noiva logo pela manhã. Já que havia chegado cedo ao aeroporto, foi para um bar. Enquanto esperava, tomou duas doses de uísque.
Quando o avião aterrissou, Felipe se posicionou bem em frente à porta de desembarque. Um mar de passageiros saiu, mas nada do estrupício. Ele esperou cinco, quinze, vinte minutos, e nada. Até que finalmente viu uma mulher belíssima, sorrindo em sua direção. Não, não podia ser... Roberta era muito feia enquanto que aquela mulher era maravilhosa! Seu cabelo parecia sedoso, o sorriso era brilhante e seu olhar faiscava. Usava um vestido leve que se enroscava em seu corpo sensual. Ela não era uma tábua como a maioria das americanas. Tinha bunda e peito. Felipe custou a crer que era Roberta. Só quando ela falou seu nome e o abraçou é que ele teve certeza.
Felipe fez uma ligação para a noiva e passou o telefone para Roberta. As duas se falaram por cinco minutos. Depois, ele conduziu a moça ao hotel. Após o “check-in”, ele levou-a para dar uma volta de carro pela região. Em pouco tempo, ele estava completamente seduzido pelo charme, e pela beleza da moça.
Ao anoitecer, Felipe convidou Roberta para jantar em um lugar romântico fora da cidade. Lá o rapaz pediu champanhe e os dois brindaram ao casamento, à viagem de Roberta, ao futuro... Roberta impressionou o rapaz. Ela parecia demonstrar um real interesse por ele, pois perguntara sobre a sua vida, seus planos, e rira das suas piadas! Uma hora ela foi ao toalete, e aproveitou para mandar um torpedo para Paula, dizendo que estava de volta ao hotel. Estava tão cansada que ia dormir imediatamente.
Quando voltou para a mesa, Roberta comentou sobre um pianista que estava no outro salão. Ele estava tocando umas músicas gostosas e a maior parte dos casais já havia ido para lá. Felipe e Roberta foram para a pista. Dançaram colados por alguns minutos até que, levado pela atração e pela bebida, Felipe beijou-a. Em pouco tempo, estavam no segundo andar do restaurante, onde havia uns quartos para os hóspedes que preferissem pernoitar ali. Entre beijos e abraços, estouraram outro champanhe. Depois de transarem, Felipe foi ao banheiro. Roberta olhou o relógio: quase meia-noite. Ela então aproveitou e colocou um líquido na bebida dele. Era uma dose forte de “Boa Noite Cinderela.” Haviam lhe garantido que a pessoa que ingerisse aquela quantidade da droga dormiria por quase vinte horas. Quando Felipe voltou, Roberta propôs outro brinde, e fez com que ele bebesse a taça toda sem lhe dar tempo de sentir algum gosto amargo. Dali a pouco, ele já dormia profundamente. Roberta notou que o celular de Felipe estava com a bateria baixa. Ainda assim, colocou o aparelho no silencioso. Depois, pegou um dos lençóis da cama e amarrou os pés e as mãos do rapaz, mas deixou o nó frouxo. Em seguida, usou a cueca para tapar-lhe a boca. Quando acabou, pegou o telefone e pediu um táxi ao recepcionista. Antes de sair, pôs o aviso de “Não perturbe“ do lado de fora da porta. Deu uma última olhada para o rapaz desacordado, e disse:
- Felipe, você está um lixo!
Na manhã seguinte, todos procuravam pelo rapaz. Seus parentes já haviam deixado inúmeros recados e mensagens de voz em seu celular. Tanto os amigos quanto os colegas de curso não faziam ideia do seu paradeiro. Como Roberta tinha estado com Felipe no dia anterior, indagaram se ela se lembrava de algo que ele pudesse ter dito. Ela contou que, ao ser perguntado se iria ao encontro de amigos, ele teria negado. Estava com sono e só queria ir para o resort dormir.
Ninguém ousou dizer nada a noiva, pois não queriam estressá-la. Ao mesmo tempo, todos esperavam que Felipe aparecesse antes da hora do casamento.
Quando Paula acabou de se arrumar, ela se olhou no espelho. Estava linda, entretanto, foi só Roberta entrar em seu quarto, para ela perder a autoconfiança. Sua dama estava deslumbrante! O espanto de Paula era tão evidente que a amiga resolveu satisfazer sua curiosidade. O milagre era fruto de muito trabalho. Roberta havia procurado o auxílio de uma nutricionista e de um “personal trainer”. Sob a supervisão dele, malhava cinco dias por semana. Seu tratamento dentário havia acabado, e ela não precisava mais de aparelho. Quanto a sua visão, seu oftalmologista tinha sugerido o uso de lentes de contato. Fora isso, Roberta ainda havia descoberto um ótimo profissional que conseguira dar um jeito em seus cabelos.
Durante a conversa, Paula começou a ficar ansiosa porque sentia algo estranho no ar. Sua mãe parecia tensa, mas quando perguntada se alguma coisa estava acontecendo, dizia que não. Quando o relógio deu onze horas, Paula começou a ficar realmente nervosa. Ela já estava pronta, mas não vinham buscá-la. Por que a cerimônia estava atrasada? Como ela não falava com o noivo desde a véspera, decidiu ligar para ele, mas não conseguiu entrar em contato. Paula então telefonou para Rafa, o padrinho, porém quem atendeu foi a irmã dele. Rafa deixara o celular com ela antes de ir conversar com o pai de Felipe. Se o noivo estivesse arrependido e quisesse deixar algum recado, ele teria com quem falar. Ao atender, a moça reconheceu a voz da noiva, e como ela não suportava Paula, por achá-la arrogante e presunçosa, acabou dizendo o que todos procuravam esconder:
- O casamento está atrasado porque o noivo sumiu!
Paula começou a chorar desesperada, Roberta consolava-a. Em meio ao caos, a família do noivo esperava. Eles fariam tudo o que fosse preciso para evitar um escândalo. O pai de Felipe resolvera que eles só entrariam em contato com a polícia em último caso. A princípio, ele ainda acreditava que o filho ia chegar a tempo, mas com o passar das horas, ele foi ficando cada vez mais fulo da vida:
- Eu mato esse garoto! Ele é um irresponsável! Ele deve ter tido uma senhora despedida de solteiro ontem à noite, e agora deve estar bêbado. Nós aqui nessa aflição, e ele provavelmente está dormindo, do lado de uma prostituta barata, em algum motel de beira de estrada. Ele vai ver quando chegar!
À medida que os minutos escoavam, o desespero de Paula aumentava. Enquanto isso, Roberta gargalhava por dentro. Quando deu uma hora da tarde, o local da cerimônia já se encontrava praticamente limpo. Os convidados já haviam ido embora e Roberta já havia se trocado também. Ela pediu mil desculpas à amiga, mas tinha que voltar para o Brasil. Roberta ainda reconfortou a noiva, dizendo que tudo ia se esclarecer em breve. Ela pegou um táxi e foi para o aeroporto.
Já dentro da aeronave, Roberta passou em revista os últimos acontecimentos, e prometeu a si mesma que nunca mais seria capacho de alguém, afinal de contas, o filhote de cruz-credo havia morrido. Agora que relaxara, suas pálpebras começaram a pesar de tal maneira que ela nem viu quando o avião decolou.
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