Sobre Miguel e o preconceito

Vivo em um país racista. O preconceito está ao nosso redor, flutuando no ar. Meu nome é Miguel, sou um homem branco, caucasiano. Não me considero preconceituoso, pois tenho muitos amigos negros. Pra falar a verdade, não tenho amigos negros, tenho conhecidos negros. Já trabalhei com um sujeito chamado Caio, ele era negro e também muito divertido. Ria um bocado de suas piadas, algumas eram de humor negro, com personagens negros. Caio não se importava em tirar sarro da própria cor da pele.

Sério, não tenho preconceito algum em relação à raça negra, mas também não vou dizer que morro de amor pelas pessoas dessa cor peculiar. Não sei dizer ao certo o que sinto quando me encontro com um negro desconhecido. Odeio ser abordado por pessoas desconhecidas na rua, detesto mesmo. Me sinto invadido. Mas quando um negro desconhecido me para para pedir informações ou esmola… deus! Me sinto péssimo! É quase como se eu fosse alérgico! Juro, por favor, não me leve a mal, volto a repetir, não sou racista, não acho que nós, a maioria branca, seja superior aos negros. Infelizmente, não sei o que acontece comigo, sou atacado por um comichão frio que me atormenta a pele, mesmo sem ser tocado. E o pior mesmo é quando sou obrigado a apertar a mão de um negro. A maioria das mãos negras são ásperas, secas… isso me dá nos nervos! Chego mesmo a ter tremedeiras, mas me esforço ao máximo para escondê-las. Odiaria fazer um negro se sentir incomodado por alguma de minhas reações, digamos, "alérgicas".

Não sou preconceituoso, mas tenho consciência de que a sociedade é preconceituosa. Talvez essa minha estranha alergia seja resultado de alguma herança genética preconceituosa. Tem que ser algo assim, não tem? O tataravô do meu tataravô ou do meu bisavô, sei lá, odiava os negros, e assim foi passando, geração após geração, até que finalmente todo esse ódio chegou aos meus genes e por causa disso tenho essa sensação horrível na pele toda a vez que me encontro com um negro. Será que essa é uma hipótese tão maluca assim? Não faço ideia. Só sei que não me agrada nem ver a foto de um negro no jornal, ou na TV, ou mesmo na tela de um computador. Mas, quero deixar bem claro, mais uma vez, que não sou racista. Isso não tem nada a ver com racismo, absolutamente nada! É algo físico, tátil.

Ontem mesmo dei um real a um negro pedinte no farol. Ele agradeceu e sorriu, como qualquer pessoa normal. Retribuí o sorriso e fechei a janela de meu carro em seguida, lutando para conter a coceira fantasma que começava a percorrer pela pele de meu antebraço. Céus, só de lembrar já estou me coçando todo aqui. E como está quente hoje! Detesto o calor! Espere um pouco, deixe eu abrir essa janela aqui. Está um pouco emperrada… sabe como é, prédio antigo… mas nada que um tapinha não resolva. Pronto, viu, está aberta. Vamos deixar o vento de nossa cidade refrescar esse quarto. Sobre o que eu dizia mesmo? Ah sim, os negros e os sintomas estranhos que me causam. Bem, deixe-me voltar a falar do Caio, meu antigo colega de trabalho.

Um dia ele convidou o pessoal da empresa para ir ao seu aniversário. Ia ser um churrasco em sua casa. Caio tinha uma casa grande, tinha não, tem um casa grande, pelo menos acredito que ele ainda deve ter aquela casa. Ele disse que poderíamos levar nossas famílias, claro, quem tivesse uma… não era o meu caso. Estacionei meu carro na calçada, pois não havia nenhum estacionamento a vista, mas tudo bem, meu carro tem seguro. Assim que toquei a campainha fui recebido por sorrisos muito brancos, como só os negros têm, e por muitos abraços, beijos e apertos de mão. De repente eu estava cercado pela família negra de Caio. Eles eram muito amigáveis e amáveis. Muito receptivos! Pensei por um breve momento que iria desmaiar, que toda a pele de meu corpo se contorceria e rasgaria de dentro pra fora. Eles notaram minha súbita mudança, e perguntaram se eu estava me sentindo mal. Claro que neguei, inventei que às vezes minha pressão caía depois de dirigir por muito tempo, que tudo que precisava era comer e beber cerveja. Eles riram e me levaram até o terraço onde ficava a churrasqueira.

Deus, como está quente hoje! Desculpe, mas meu ventilador está quebrado, e esse quarto minúsculo esquenta como se fosse uma sauna. A verdade é que eu também me sentia em uma sauna enquanto estava na festa de Caio. Gotas quentes de suor fugiam por todos os meus poros e eu podia sentir cada uma delas escorrendo pela minha nuca, barriga e pernas.

— Filho — disse a avó de Caio para mim, e, segurando minha mão, continuou em tom de confidência — Você tem um problema com negros, não tem?

Imagine só a minha surpresa. Aquela velha senhora sabia que eu tinha um problema com negros, mas como tentar explicar o meu problema para ela sem que ela se ofendesse e me acusasse de ser racista?

Mais uma vez me vi obrigado a mentir. Não tinha problemas com negros, em absoluto. Eu estava apenas estressado por conta do trabalho, e, como fazia um dia quente dos diabos, aproveitei e disse que detestava o calor. A vovó riu e apertou ainda mais o aperto de sua mão na minha. Por um segundo tive um impulso terrível de me livrar do aperto dela e empurrá-la para longe. Deus! Se eu tivesse feito uma coisa dessas, poderia ter lhe matado. Pessoas mais novas já morreram por causa de empurrões. Uma idosa então… seria um desastre!

— Você é engraçado filho, qual o seu nome mesmo?

— Miguel, meu nome é Miguel.

— Miguel, o seu prédio está em chamas e tudo que consegue pensar é no seu problema com negros.

Não entendi muito bem com o que ela quis dizer com "seu prédio está em chamas", mas voltei a dizer que não tinha problema nenhum com os negros. Ela voltou a rir. Então… nossa! Isso é fumaça? Droga! Tem fumaça preta entrando pela porta de meu quarto! Deus! O prédio está pegando fogo!

A janela! Eu moro no quarto andar, que é o último andar desse prédio velho. Seria uma queda e tanto, com um fim horrendo no asfalto quente lá em baixo. Mas o que é isso? São… sirenes! Sim, ouço sirenes! Graças a deus! Um carro de bombeiro vem se aproximando. Seria possível que a avó de Caio tenha previsto esse incêndio? Era disso que ela estava falando naquele dia? Como ela sabia que eu tinha problemas com os negros? Bem… está muito quente agora… acabei de colocar algumas roupas na fresta da porta, para tentar impedir a fumaça de entrar, mas a situação parece bem tensa. Ouço as pessoas gritando lá fora, dizendo que tem um homem preso no quarto andar. Eu sou esse homem. Elas estão apontando para mim e eu aceno de volta para elas da janela.

Os bombeiros chegaram! Já me viram e estão tirando a escada do caminhão. Talvez eu saia dessa!

Bem, como eu ia dizendo. A festa de aniversário de Caio foi um sufoco para mim. A família dele e até mesmo a estranha vovó eram pessoas boas, mas, infelizmente para mim, negras. Era como se eu estivesse envolto em chamas. Seus toques eram como labaredas raspando em minha pele.

Percebi que meus colegas caucasianos e suas famílias caucasianas olhavam de modo estranho para mim. Como se eu os estivesse encabulando. Mas que culpa tenho? De reagir desta maneira na presença de gente de cor? Quantas vezes mais tenho que dizer aqui que não sou racista?

Veja só! A escada já foi posicionada, tem um bombeiro subindo por ela. Em poucos instantes ele estará em minha janela.

Ele chegou!

— Senhor, não se preocupe, vou tirá-lo daqui.

O bombeiro falando comigo em minha janela é um homem de trinta e poucos anos, negro. Acho que nunca vi uma pessoa tão bonita em toda a minha vida. Que pele bonita ele tem, brilhante como pérola negra. Os olhos escuros, profundos, cheios de bondade.

— Pode vir, senhor, vamos descer juntos, não olhe para baixo, concentre-se na escada.

Que voz firme e confiante.

— Não se preocupe, estou com você, vou te segurando.

Sabe... eu não tenho nada contra homossexuais, nem sou um homofóbico, mas o jeito que aquele bombeiro me segurava me fazia pensar que... talvez... ele não jogasse no mesmo time que eu.

Alexandre Royg Machado
Enviado por Alexandre Royg Machado em 24/04/2015
Reeditado em 19/08/2016
Código do texto: T5218205
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