A EXTRAORDINÁRIA ESTÓRIA DE VANDECO, O ESTRANHO
A fatalidade surge de onde menos se supõe, parece estar sempre à espreita, a espera de uma oportunidade para se manifestar. Foi assim com Vanderley, mais conhecido por Vandeco, um homem simples de hábitos simples porém bastante estranho, introvertido e solitário. Vegetariano, ensimesmado e abstêmio morava só num minúsculo apartamento de sala, quarto e cozinha localizado num prédio antigo no centro velho da cidade de São Paulo. Quase assexuado não demonstrava interesse pelo sexo oposto, não casou, nunca teve namorada e, claro, não tinha filhos. Nada se sabia sobre seus parentes, nem se os tinha, costumava frequentar sebos onde comprava livros de autoajuda e gostava de assistir filmes antigos no seu aparelho de DVD. Certa vez numa dessas visitas à um sebo encontrou um livro que tratava de meditação, controle do subconsciente e outros assuntos relacionados e, assim, em pouco tempo devorou o livro passando a executar os exercícios que ali continham. Na repartição onde trabalhava, sempre que podia praticava a meditação. O livro passou a ser seu companheiro as 24 horas do dia pois quando não estava com ele no trabalho ou na condução, estava ao seu alcance na cabeceira da sua cama. Leu e releu várias vezes e sabia de cor todos os exercícios que ali continham para uma existência supostamente melhor. Notou que sua vida deixou de ser apenas uma passagem quase vã por este mundo para se tornar um ativo cidadão interessado em política e assuntos diversos. Usando técnicas que aprendeu no livro passou a ter noites de sono mais tranquilas e reparadoras e dias mais interessantes. Assistia os filmes antigos com olhos críticos e fazia comentários sobre este ou aquele ator, esta ou aquela atriz e até mesmo sobre a eficácia ou não dos diretores. Para sua surpresa depois de anos de convivência notou que sua colega de trabalho, aquela morena peituda que usava saias curtas e tinha coxas grossas, era realmente muito bonita e atraente. Atravessava uma fase da vida bastante interessante e olhava o mundo de maneira muito diferente do que sempre olhou. Sabia que tudo isso era efeito dos ensinamentos que o livro lhe dera e agradecido passou à novos experimentos. Certo dia ao ajudar a peituda a mudar de posição uma pesada estante no escritório, deu um mau jeito no ombro e passou o dia todo com dores no local. Ao chegar em casa, depois do banho resolveu que poderia curar-se a si próprio entrando mentalmente nos seus ossos e veias e extirpar o mal que lhe causava dores, habilitando todas as suas funções. Deitou-se de costas, relaxou todos os músculos do corpo começando pelas pontas dos dedos dos pés até ficar totalmente isento da tensão muscular. Concentrou-se e teve a sensação de que realmente estava dentro do seu próprio corpo. Percorreu veias em todas as suas extensões, andou pelos músculos, mucosas dos ossos, pâncreas, fígado e rins chegando até o ombro onde sentia as dores. Mentalmente retirou o mal que lhe causava dor e, cansado pelo esforço que não sabia que teria, adormeceu profundamente.
Três dias se passaram sem que Vandeco aparecesse no trabalho, o que chamou a atenção de todos pois não costumava faltar, sendo que a última falta ocorrera há mais de três anos quando houve uma greve no setor de transporte público. Não atendia ao telefone e assim seu chefe imediato resolveu levar o caso à polícia. Depois de baterem e chamarem por ele, as autoridades resolveram arrombar a porta do apartamento. Ao entrar o delegado viu Vandeco imóvel sobre a cama parecendo-lhe estar morto. Vandeco foi retirado e levado num carro do Instituto Médico Legal para o necrotério da cidade onde foi colocado nu sobre uma mesa fria à espera de que o Médico Legista o examinasse e liberasse o corpo para que se fizesse toda burocracia para enterrá-lo. No silêncio fúnebre do necrotério em meio a corpos de suicidas, atropelados e outros cadáveres, Vandeco com os batimentos cardíacos muitíssimos lentos, quase parados mas ainda vivo, como ursos em hibernação, olhava fixamente para o teto tentando sair daquela situação letárgica e gritar: “Estou vivo, tirem-me daqui, não aguento mais este frio” mas, como não conseguia se mexer nem falar, três dias depois Vandeco morreu e foi enterrado como indigente. Quando o Legista o examinou ele já estava morto e o médico acusou hipotermia e falência múltipla dos órgãos como causas da morte. Vandeco foi enterrado como indigente e jamais alguém soube que ele morreu de frio no próprio necrotério e que esteve ali por não conseguir libertar a sua mente que ficou presa dentro do seu próprio eu...