João dois
Não fosse a formalidade do encontro eu já teria tirado os sapatos de bico fino para massagear as plantas de meus pés e os dedos neste carpete cheiroso. A cor e a textura me fazem lembrar dos doces de leite que a tia Tereza fazia. Que saudade...
É a única coisa que gostei, o carpete. A mesa bege é de mármore. Pelo amor de Deus! Mármore! No escritório! As cadeiras são horríveis também. Verde-oliva, tanto as reservadas aos visitantes quanto a do dono da mesa. Tem uma chapa fina de plástico duro no assento. Se alguém com corpo da Cláudia Gimenes senta-se aqui, parte a cadeira no meio e vai passear de ambulância antes das perguntas terem sido feitas. A janela ao fundo é grande e, por isso, desproporcional ao cômodo, que é uma gaiola. E é dotada, inevitavelmente, de dois pares de persianas ridículas, que se assemelham a ataduras tiradas de uma múmia. Todo este resto pode parecer perfeito aos olhos dos coitados de gravata que aqui habitam, mas a mim assustam. Sala pequena e apertada. Sufocante, tanto quanto devem ser os prazos para as metas das vendas.
Lá vem Don Corleone! Sorriu e sentou. Fez algumas piadas e contou histórias bonitas de quando tinha a minha idade. Deve ser para deixar o candidato menos tenso. O chefe tem bom coração, vejam só! E claro, depois do leite condensado, o embate com gosto de limão puro sem açúcar. Veio com esta:
- Por que você se considera a pessoa ideal para esse trabalho?
- Dr. Mendonça, na empresa em que trabalhei anteriormente, desempenhando a mesma função, fui elogiado por meu antigo chefe. Sou querido pelos ex-colegas, eles me telefonam com frequência e às vezes combinamos churrasco nos fins de semana. Me considero um bom funcionário, e por isso ideal - o homem pareceu surpreso com minha resposta.
- João, você já passou por alguma situação difícil no trabalho?
- Já sim, doutor. Várias.
- Pode descrever uma e dizer como a resolveu?
- Claro. Certa vez precisávamos fazer uma encomenda de melões...
- Melões? - interrompeu, quase que implorando a Deus para que tivesse escutado errado.
- Sim, melões! A empresa estava para receber clientes chineses. Eles são muito exigentes, o senhor sabe. Pesquisando, descobri que eles são loucos por melões. Tomei a iniciativa, fui até a sala do chefe e sugeri eu mesmo ir encomendar as frutas na quitanda da esquina.
- Que bom - a expressão não era de quem estava contente.
- Sim, mas não fiz como a maioria costuma fazer.
- Ah não?
- Não! Se fosse outra pessoa, teria ido ver o preço, telefonado, falado com o chefe para obter autorização e comprar.
- E como você fez?
- Não perdi tempo, já encomendei direto. Voltei para a empresa, falei pro chefe do sucesso da compra e, se lá na sala dele, in loco, desaprovasse, eu ligaria para a quitanda cancelando. Preveni desta forma a lentidão da tarefa - sorri vitorioso, não por ter feito isto que acabara de narrar, mas por ter lembrado palavra por palavra, letra por letra desta história que recebi em meu e-mail. Dr. Mendonça refletiu por dois minutos e sorriu sem fazer qualquer comentário.
- João, vou fazer uma pergunta que costuma ser embaraçosa para vários candidatos.
- Não será embaraçosa para mim, doutor, tenho certeza - sabe aquela voz de comando do bombeiro que entra no prédio em chamas para salvar uma velhinha? Foi o tom que usei para esta frase.
- Por quanto tempo você espera trabalhar aqui?
- É... uns dois anos, eu acho.
- Dois anos?
- Sim! - neste momento percebi o sinal sonoro avisando que recebi mensagem no celular. Pedi licença e abri para ler. Olhando de esgueio para o entrevistador, percebi que me xingava com os olhos - desculpe, dr. Mendonça, mas era importante. Meus colegas avisaram que o ensaio que ia ser no sábado mudou para domingo.
- Ensaio? O que você faz?
- Sou ator.
- De teatro?
- Sim - foi neste momento que tomei consciência da gafe. Não deveria ter mencionado tal atividade.
- E o que estão ensaiando? - perguntou o entrevistador, curioso, porém mais preocupado, aparentemente, do que animado.
- "O assassinato do anão do caralho grande". É do Plínio Marcos. - já que comecei o assunto, teria que ser sincero. Mentir seria pior.
- Sim - calou-se por um momento, disfarçou consultando uma pasta e retomou a conversa - João, gostaria de agradecê-lo pelo
comparecimento. Daqui uns dias...
- Já acabou? - fiquei surpreso.
- Sim - dr. Mendonça já não se preocupava mais em sorrir.
- Pensei que havia mais perguntas... - exclamei, já percebendo que deu zebra.
- Não, já é o suficiente. Obrigado por vir, tenha uma boa tarde - dr. Mendonça estendeu-me a mão.
Ao passar pela entrada, entreguei um papelzinho com meu telefone para a recepcionista, conforme eu havia prometido antes de entrar na sala do chefe. Ela pareceu não ter ficado muito contente, mas terá as horas da tarde, do happy hour e da noite para refletir sobre minha boa ação. O que eu não esperava, sinceramente o que eu não esperava nem hoje nem nunca era encontrar a Michele na esquina. Saiu quase sem fôlego:
- Oi...
- Eu tinha certeza que você vinha pra esta entrevista, senhor João magnata! O cargo oferecido é a sua cara!
- Sério?
- Intuição feminina, querido - pegou na minha mão disfarçadamente e quando nos afastamos mais uma quadra, para minha sorte ou azar, me deu um
beijo com gosto de saudade. Ela passou dois meses fora e voltou com fome. O que se passou nas horas seguintes prefiro não relatar neste momento. É que foi tão intenso que preciso de alguns dias para pensar a respeito. Nem deu para encontrar meu irmão naquele dia. Foi na manhã seguinte que fui revelar o resultado.
Definitivamente não é a minha imagem que vejo. Primeiros brancos tentando cobrir sempre no penteado e o mesmo sorriso de antes, discreto. Pena não ter bom gosto. Que camisa azul clara horrível é essa, meu chapa? Quer me matar de vergonha?
- E aí? - tocou meu ombro e me fez um cafuné. A vida inteira vai fazer isso. E é exatamente este gesto que fazia os familiares, minha mãe, inclusive, distinguir um irmão do outro. O toque no ombro seguido de cafuné na nuca do mano José é marca registrada do João. "Só ele faz, você não?", perguntou certa vez uma prima. "Somos gêmeos, mas gêmeos não são iguais", explicava ele. Ou eu, referindo-nos a todas as outras características - exceto as físicas - que nos torna tão diferentes.
- Foi tudo certo, Jan. E com a gata lá?
- Cara... foi uma loucura! Se você não tivesse ido na entrevista pra mim eu perdia esse avião. Te devo essa. À tarde eu passo o dinheiro pra tua conta.
- Nem precisa.
- Claro que precisa! É o combinado!
- Foi bem divertido.
- Divertido? Quer o emprego pra você? Aí eu fico no teu lugar tocando na banda e fazendo teatro!
- Nem pensar, Jão. Nem pagando bem! Eu fico é longe desse negócio de escritório.
- Tá, mas o combinado é promessa.
- Não precisa, já falei! Deixa pra próxima. Já fui recompensado.
- Recompensado? Deixa dessa, rapaz! Peraí que chegou mensagem. Nossa, cara, é a Michele!
- Jão, preciso ir.
- Peraí, Zé, vamos tomar um café.
- Fica pra próxima, tô atrasado!
Antes do abraço de despedida, li na tela do celular a palavra: "adorei!", com vários corações. E enquanto me distanciava escutei João questionando em voz alta: "adorei? 'Adorei' o quê?".