A tábua do bife e o microfone

O botão, o clic, a sintonia, e o rádio quebra o silêncio. E na hora de sempre, todo santo dia, o mesmo locutor. Fala mansa e firme, quente e bonita, o português cuidado, os assuntos e mensagens conhecidas, o locutor tal assim como de casa, da cozinha, por assim dizer. E, enquanto bate o bife, bota sal, cebola, salsa, vinagre, limão, pimenta, bota alho, vai como que conversando com o locutor, que nem ele estivesse ali, encostado á porta da cozinha, observando, aguardando o almoço. Tudo tão bem que merece uma cervejinha gelada, enquanto cozinha.

A voz me sabe a lonjuras, quietudes, transcendências, furacões e brisas pefumadas, maresias, verdes mares, maremotos, convulsões, esquisitas diversões, diversificações, migrações, mudanças, devaneios, carinhos, carícias, delícias, viajo sempre qual fora em barco, embarco sempre de minhas mãos, da tábua do bife rubro da prancha, do cais comum do dia-a-dia para a terra prometida dos carinhos dessa voz...

Todo santo dia, à mesma hora, o prefixo comercial, e eis que ascende a fala mansa e firme, a voz querida, os assuntos repetidos e, por isso exatamente, sabendo a doce intimidade. Eles se entendem. E existe o desejo ardente e secreto de conhecê-lo algum dia, beber da sua paz, de provar dos seus desvios, ouvir de perto aquela fala mansa e firme, aquela voz a estava atraindo para um mergulho sem volta.

Mas o sol volta, o dia amanhece, mas para ele não passa de mais um dia comum. Outro, meu Deus, que a vida não muda. Como em corveia, me sinto obrigado, devedor, que nojo do dia a dia, essa caminhada sem sentido para o matadouro!

E a toalha enrolada na cintura, dentifrício, escova e sabonete na mão, toma o corredor para o banheiro (não usa a suíte, pra não dividi-la com Emilinha), a pia a torneira, a água quente, o vaso sanitário, o ruído da descarga, toalha no rosto, higiene, um saco, isso é que é essa rotina! Menos um dia de vida, mais um dia na rádio. Ao sair, deixa Emilinha, coitadinha, franzininha, encolhidinha no meio dos lençóis.

Na rádio, no horário de sempre. Cumprimentos, bons-dias, tá na hora de ir pro ar, anda depressa, gargarejos, garganta limpa, é hora, bota carícia na voz, passa verniz, engraxa, alisa, fala manso e firme, vai ao coração dos ouvintes, meu coração tá fraco, ai mas tenho o coração dos ouvintes, você não pode tirar férias, seu programa é Ibope garantido. A gente perde o patrocínio, sua voz já é uma patente, potente, paciente, você é o melhor locutor, falar nisso, já renovou o seguro da voz?

Bom dia, queridos e queridas ouvintes. Aqui Carlos Cordeiro com vocês, como todo santo dia. Paz e amor. Que o dia também lhes traga esta felicidade simples de estar vivo numa manhã tão linda... E para seu catarro, asma ou bronquite, não se esqueça: o remédio certo é Macelite! Macelite, á venda em todas as boas farmácias e drogarias. E para iniciar bem nosso programa, alegrando mais seu coração, segue a melodia...

O marido, mais uma, nem olha para o almoço. Chega dizendo que já vai sair, que o trânsito estava horrível, que veio só ver se ela está cuidando dos meninos, porque toda preguiçosa tem que ser vigiada.

Vai daí, um xinga de cá, o outro xinga de lá, deixa eu escutar o rádio, mulher não tem direito? Escuta, escuta, coisa nenhuma, um insulto, ameaça, apaga rádio, acende rádio, baixa volume, sobe volume, “a vida é bela prá quem sabe sorrir", um tapa, um soco, um safanão, empurrão, cai no chão, arranhão, “para arranhões e cortes, mercúrio-cromo Dr. Coortes”, queda, faca garfo, sangue “não se perturbe, caro ouvinte, tudo tem seu tempo certo”,” dá a outra face a quem te injuria”, e tome mais, é pano, é prato, e vassoura e tábua, bife, sangue, vizinhos, polícia, delegacia...

Na sala de espera, jururus, os brigões têm o prazer de conhecer o famoso locutor Carlos Cordeiro, o da fala mansa e firme, indiciado por lesões corporais, a esposa ao lado dele, escoriações generalizadas, coitadinha, tão franzininha, amarela até, que covardia, também aguardando atendimento... É, dinheiro não traz felicidade mesmo, um cavalo desses bater na coitadinha, esses ricos...

Hoje, por motivo de força maior, não vai ao ar o programa “Paz e Amor, com Carlos Cordeiro” Em substituição, segue uma seleção musical. E lembre-se: Paz e Amor. Para seu catarro, asma ou bronquite, tiro e queda é Macelite. Para arranhões e cortes, mercúrio-cromo Dr. Coortes...

William Santiago
Enviado por William Santiago em 13/04/2015
Código do texto: T5205369
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