757-A HISTÓRIA DO MAJOR RUFIANO - Crimes e Castigo
Ao chegar à cidadezinha encravada na morraria sem fim, para trabalhar no escritório do IBGE, uma das primeiras coisas que ouvira fora a história da Matinha do Major.
Escutou e não acreditou.
—Mas que besteira! — disse em voz alta no bar, perante um grupo de pessoas que nem conhecia direito. — Isso é lenda. Pensa bem! Um cemitério particular dentro do mato. Bobagem!
— Olha, seu Miguel, a gente sabe do que está falando. — Um senhor de mais idade, sentado no fundo do bar, levantou-se para responder Miguel — Aconteceu tudo como o senhor acaba de ouvir.
Parece que ninguém ali da roda gostou dos comentários de Miguel. Um silêncio desceu sobre a rodinha na qual Miguel estava.
— Mas não é um cemitério, não senhor. — Prosseguiu o homem lá do fundo. — Os mortos foram enterrados numa vala que corria por dentro da mata. Depois vieram os bichos, que fuçaram tudo. Hoje não existe mais sinal dos enterrados.
— Só os fantasmas! — Disse, em tom de gozação, o colega Gervásio.
Naquela ocasião, ele ficou impressionado com a reação do pessoal no bar. Mas acabou por se interessar mais pela lenda.
Era uma história de violência e de mortes, ligada à formação do município, às brigas pelas posses de terras ditas devolutas.
]Foi Gervásio, que, parece, conhecia todas as pessoas de Gabiroba e sabia de tudo o que havia acontecido por ali, o narrador da tétrica história da Matinha.
Confundindo-se entre lenda e realidade a história da Matinha do Coronel é antiga, vem dos tempos do Império, da Guerra do Paraguai e dos escravos.
Situada no alto de uma elevação que domina a cidade, a matinha que permanece intocada é o que resta da grande Fazenda do Morro, outrora constante de mais de 500 alqueires de terra. A família Bragança detivera a posse desde tempos imemoriais, mas a decadência da família fazia com que a cada geração áreas da fazenda eram vendidos ou ocupadas por posseiros ou simplesmente abandonadas.
A desagregação da família aconteceu ao mesmo tempo em que as terras iam sendo perdidas.
O personagem mais famoso da família Bragança foi Rufiano. Revelou-se valentão e, diferente dos outros membros degenerados da família, antes de completar 20 anos, apresentara-se para lutar na guerra do Paraguai.
— Besteira, filho,. Fica aqui, me ajuda na fazenda – disse o pai, Domingos, antes da partida.
— Vou e volto logo. Não se preocupe, pai. Ainda venho recuperar as terras que nos roubaram.
Saiu valente o voluntário da pátria, voltou como Capitão. Notícias falavam não só da bravura nas batalhas como na crueldade no trato com o inimigo. O tempo passado nos campos de batalha transformaram Rufiano. Ou melhor, aumentou a grosseria, a rudeza de comportamento e a crueldade no trato com as pessoas.
Entrou em choque com o pai assim que chegou à fazenda. O velho, homem de temperamento calmo, administrava como podia o remanescente do grande patrimônio que fora o legado dos Braganças. Já o major chegou com novas ideias:
—Vamos recuperar as terras que nos pertencem, que são da família.
— Não dá mais, Rufiano. Houve muitas vendas. Os posseiros tomaram conta há muitos anos. Vamos tocar a parte que podemos.
Era opinião não só do pai, como da mãe e também do filho mais velho, Casemiro.
Com a morte do pai, o Major (era assim que gostava de ser tratado) assumiu o comando da fazenda, passando por cima das ordens do irmão, que não soube resistir ao ímpeto de Rufiano.
Os escravos, tratados com relativa complacência pelo velho Domingos Bragança, foram os primeiros a sentir na carne a crueldade do novo patrão.
— Essa negrada tá mal acostumada. Daqui pra frente vão comer o pão que o diabo amassou. — Vangloriava-se o Major, quando começou a infernizar a vida dos negros e tirar-lhe as pequenas regalias já adquiridas.
Em seguida, começou a importunar os vizinhos, com o intento de obter de volta as parcelas de terras vendidas ou em poder de posseiros. Para tanto, contratou secretamente os serviços de quatro jagunços, que passaram a viver num casebre em lugar pouco conhecido frequentado, o Grotão da Cachoeira.
Noticias de violências passaram a correr pela região, de ameaças, ataques noturnos, incêndios e outras desgraças, a fim de aterrorizar os pequenos sitiantes estabelecidos em terras antes pertencentes aos Braganças. Pessoas começaram a desaparecer.
Para escapar da sanha dos quadrilheiros, sabidamente a serviço do Capitão, muitos fugiram, preferindo perder as terras do que as vidas.
A fim de que não ficassem provas dos assassinatos consumados, o bandidos a soldo do Major levavam os corpos e os enterravam na matinha que ficou sendo conhecida como a Mata do Major. Conta-se que mais de cincoenta corpos foram enterrados nos valos, sob as frondosas árvores.
As terras abandonadas eram incorporadas á fazenda dos Braganças, delimitadas com novas cercas e valas profundas.
Não houve força do governo que conseguisse pegar os causadores de tantas tragédias nem que impedisse a anexação das áreas à fazenda sob o mando do Major.
Enquanto viveu o ele foi a face cruel dos Braganças procurando reconstituir o grande patrimônio da família. Mas como não há mal que sempre dure, o dia do Mjor também chegou.
E foi quando saia da igreja, num domingo, após a missa, uma bala de espingarda, manobrada por um atirador tocaiado não se sabe onde, atingiu certeira a cabeça do Coronel. Mais três disparos foram ouvidos, sem atingir ninguém. O Major, principal alvo do atirador nem socorrido foi, pois as pessoas que desciam as escadas da igreja fugiram apavoradas, correndo para as casas ao redor do largo, à procura de abrigo.
O Coronel caiu já morto e ali ficou por uma boa meia hora, até que padre Damião, criando coragem, saiu pela porta da igreja e abençoou o corpo, cuja alma, àquela hora, por certo, já estaria chegando ao inferno.
Conto # 757 da Série Milistórias – BH, 10.11.2012