Adesão

De manhã, quando desceu para o trabalho, abriu a porta do elevador e viu que alguns deles estavam sentados na calçada do prédio em frente, não teve mais dúvidas: estava finalmente sitiado. Daí, nem chegou a dar outro passo, fez meia volta e subiu pelas escadas mesmo, apavorado, botando o coração pela boca, até o terceiro andar, e se refugiou de novo no silêncio de seu apartamento de solteiro.

Quando a respiração voltou ao normal, começou a pensar: quem sabe eles iam se cansar de esperar por ele, iam sair da porta do edifício, quem sabe tudo era apenas bruta impressão, que não o estavam perseguindo, que só estava ficando louco ou coisa parecida. Afinal de contas, por que haviam de persegui-lo, logo ele, que nem rico era? Por que ele, que tinha de trabalhar como funcionário público, um serviço monótono e sem desafio de espécie alguma, que mais parecia uma condenação perpétua do que um meio decente de ganhar o pão? Por que ele? Por quê? Quem saberia dizer?...

Deu-se conta, então, de que, pela terceira vez em poucos dias, ia faltar ao trabalho, ele que tinha passado anos sem sequer apresentar atestado médico. Tinha de avisar, já tinha a desculpa na ponta da língua. Ligou, pediu para falar diretamente com o chefão. Esse não perguntou muito. Foi logo dizendo que, se estava com diarréia outra vez, se cuidasse, tomasse muita água. Que ele faria falta sim, mas que tudo estava sob controle, que ficasse frio, que pensasse, antes de tudo, em sua saúde. Que o trabalho ia continuar lá, mesmo depois que ele morresse. Passasse bem.

Desligou. O silêncio do apartamento, na manhã de um dia útil, no horário em que deveria estar no Ministério, trouxe-o de volta a seu pequeno inferno. Foi até a janela, afastou um pouco as cortinas, a ver se os localizava na calçada, lá embaixo. Nada. Teriam ido embora? Teriam mudado de posto? Ou teria sido mesmo mera impressão? Voltou, sentou-se na beira da cama. Ainda que se esforçasse muito, não conseguia entender por que o estavam perseguindo.

Lembrou-se que (aí se arrepiou de pavor) uns dias atrás, logo de manhãzinha, naquele semáforo de três tempos, ele, distraído, esperava o sinal verde. De repente, brotando do nada, aparecem aquelas gengivas, aquele riso indecente bem na janela do carro. Era aquela mendiga que anda de joelhos, a perna direita retorcida como um chifre de bode, assim para trás, saindo de dentro do vestido molambento, preto do pó do asfalto. É aquela que pede esmolas numa cumbuca de alumínio em frente ao supermercado, o de perto de seu prédio, por que teria mudado de posto? Nenhuma dúvida: fazia parte do complô e tinha vindo tocaiá-lo ali. Ela, a que canta numa língua estranha, enquanto as moedas tilintam no alumínio, não pediu esmolas daquela vez. Só esbugalhou os olhos, interrompeu o riso rouco e, mirando-o ameaçadoramente, disse: não adianta fugir, mocinho!

Bandida. Mal acabou de falar, no momento exato em que o sinal se abriu, ele cantou pneus, voou pela avenida afora. Naquele dia, mal chegou, já avisou que ia sair mais cedo do trabalho, disse que estava com diarréia, ia ao médico. Não foi. Não tinha nada. Ou ia dizer ao médico o que realmente estava acontecendo? Iam mandá-lo direto para uma clínica psiquiátrica. Voltou foi para casa, tremendo de frio e de medo, apesar do calor de dezembro, deitou-se debaixo dos cobertores e dormiu a tarde toda, atormentado por estranhos pesadelos.

Num deles, aparecia o Imperador Adriano. Era o apelido daquele mendigo enorme, quase dois metros de largura, todo já grisalho, que, dizem, já foi até professor de português e de latim. Esse ia pela rua recitando o "Animula Vagula Blandula”, a baba de epiléptico escorrendo pela barba enorme, carregando no colo seu inseparável gato encardido, a quem chamava “oh, meu caro Marco Aurélio!” No sonho, o Imperador dizia que não adiantava fugir, que já era hora de tomar a decisão, que não dava mais para ficar em cima do muro. E deitou a cabeça para um lado, veio chegando o beiço nojento na sua boca, como se fosse dar-lhe um beijo de língua. Acordou aos gritos, pára com isso, pára com isso... Tinha febre, a cama toda ensopada.

Naquela mesma noite, ia se encontrar com Vera. Não se sentia bem, mas não podia dizer não. Antes, não ficavam um dia sem se ver. Agora passava uma semana, passavam dez dias, ele a evitava. Não sabia como lhe contar o que estava acontecendo. Ia acreditar? Duvidava. Ela já vinha reclamando das estranhezas dele. Uma delas era sair bruscamente dos lugares aonde iam, um barzinho, um restaurante, quando, por exemplo, um engraxate vinha oferecer-lhe os serviços. Interrompia a conversa bruscamente, fosse o que fosse, pedia a conta e intimava-a para que fossem embora imediatamente. Outra estranheza era fugir sempre dos locais onde esses meninos se oferecem para vigiar carros. Quantas vezes, já quase estacionando em frente a um cinema ou a um restaurante, mudava de idéia e arrancava sem explicação, só de imaginá-los vindo para seu lado, gritando “quer que olha, quer que olha?” ...

Não, não podia desmarcar esse encontro com Vera. Talvez fosse melhor isso mesmo. Encontrarem-se mais vezes, combinar logo o casamento ou ir morar juntos. Quem sabe essa aflição acabava! No estacionamento, quando os olha-carros vieram, não só disse que sim, que podiam olhar, mas como também pagou adiantado. Era bom ser normal, aceitar a vida como é. Ia tentar.

Vera chegou um pouquinho depois e estava linda. Talvez fosse até mesmo o dia de resolverem suas vidas. Pediram vinho tinto, falaram pouco e olharam-se ternamente. Viajando sem se levantar, passeavam entre os jasmins, quando o suave perfume e o leve roçar de umas flores no rosto de Vera interromperam o enlevo. Era uma guria, de uns cinco anos mais ou menos, oferecendo lindas rosas vermelhas. Ele levantou-se, chutou a cadeira onde se assentava, avançou para a menina e, fúria sem arreios, enxotou-a dali, a pobrezinha que chorava. Vera acompanhou em silêncio, olhos esbugalhados, paralisada de terror.

Trouxeram a comida. Vera, de cabeça baixa, nenhuma palavra. Tremia, tinha medo de olhar para ele, de iniciar qualquer conversa que despertasse aquele demônio desconhecido de ainda há pouco. Já estavam quase acabando o jantar, e então aconteceu: quando uns pivetes irromperam na churrascaria e vieram pedir-lhes a sobra da comida, ele afastou a cadeira com violência, levantou-se e saiu a passos largos, pensando “estou perdido, são eles de novo”, mas dizendo nada, deixando Vera para trás, só e aterrorizada, à mercê dos brutos, sem saber o que estava acontecendo. Gota d’água. No dia seguinte, ela ligou para dizer que estava tudo terminado, que não ia ficar com um louco.

Hoje, particularmente, sente falta dela. Poderiam ir ao teatro, é a peça que combinaram ver juntos. Vai ter que ir sozinho. O teatro fica perto de sua casa, sai caminhando, quer enfrentar o medo, quer ter certeza de que não está ficando louco. Passa sem olhar para os lados, a cabeça baixa, é comecinho de dezembro, ignora as luzes e as canções de Natal. Porém, quando chega, logo os vê. Sim, está ficando cada vez mais difícil evitá-los, eles, parece, estão se reproduzindo como coelhos, estão tomando conta do mundo. À época do Natal, então, ficam mais assanhados, invadem as ruas, praças, portas de igrejas, desfilam com latinhas e caixinhas por todo lado, coletores de impostos. Lá estão no sítio mais concorrido, tocaiando a gente fina, como sempre fazem. Nas calçadas que dão acesso às bilheterias e aos portões do teatro, fazem um fedorento corredor polonês, mãos e olhos suplicantes.

Ele treme por dentro, mas insiste. Volta a ficar de olhos baixos, caminha até as bilheterias. Consegue comprar o ingresso, continua em direção à entrada principal ainda de cabeça baixa, parece que vai chegar incólume ao interior do teatro, falta pouco, mas não resiste. Sabe que não pode olhar para trás, mas olha e paga caro por isso, como na lenda grega: estava no olho do furacão, fora identificado. Subitamente, os olhares suplicantes voltam-se todos para ele, tornam-se acusadores e as vozes que, há pouco, repetiam humildemente “pelo amor de Deus” e “Deus lhe pague”, passam a atirar-lhe impropérios, rogar-lhe pragas, cuspir-lhe no rosto. Acabaram-se as dúvidas: estava sitiado, estavam preparando o golpe final. Fez meia-volta, volveu, rompeu o cerco daquela gente espúria, saiu em disparada.

Na volta esbaforida para casa, atravessou as ruas costurando automóveis, esbarrando no povo. Na porta de uma loja, trombou com alguém e espalhou embrulhos de presentes pela calçada, quase foi atropelado no semáforo, viu mais pobrezas e aleijões apontando para si, quanto mais corria, mais o apontavam, até que conseguiu chegar a seu edifício, abrir a porta tremendo e, sem esperar elevador, subir correndo as escadas, trancar-se no apartamento, ufa, graças a Deus.

A noite foi especialmente horrível. Acordou muitas vezes, apavorado, a boca seca, suado, o coração aos pulos como garanhões de rodeio, a certeza absoluta de que logo estariam entrando no apartamento e vindo cobrar as esmolas, gorjetas, ajudas em dinheiro, tudo que tinha negado ou de que tinha se omitido durante toda sua vida. Os pesadelos sucediam-se. Como personagens, biscateiros, mascates, flanelinhas, vendedores fracassados, prostitutas sem porvir, o casal de cegos cantores do terminal de ônibus, aleijões e dezenas doutros mais em sucessão, um carrossel ensandecido, consórcio de misérias. E, quando acordava, estava era de olhos arregalados, flechando a vista na cortina colorida, onde se estampavam, em plena escuridão, os demônios de todos seus pecados.

Daí em diante, foi se tornando cada vez mais esquisito. Descer, comprar o jornal, buscar pão e leite, coisinhas de nada viraram uma áfrica. Desde quando começaram a vigiá-lo, tem andado escolhendo os caminhos, espreitando das esquinas. Passou a pedir ao Theo, esse menino vizinho, que lhe compre o de comer, pois ao supermercado já não quer ir. Deixou de comprar discos, roupas, revelar fotos, com medo de ser atacado, violentado, estuprado, morto. E, se ainda entra numa loja, num supremo gesto de ousadia, olha primeiro pra todo lado, dá três voltas em torno de si mesmo, filme de suspense.

Dias depois, na véspera de Natal, depois de ter ligado vários dias para ele, ninguém atender, e ouvir de seus colegas que ele está faltando (já faz mais de dez dias, estamos preocupados também), Vera foi procurá-lo. Apesar de tudo, queria levar-lhe o presente, desejar-lhe Feliz Natal. No prédio, disseram "a senhora é parente? Foi até bom, ele não está bem da cabeça, está ficando esquisito, deu o carro para um desconhecido e disse que vai transformar o apartamento num albergue... Sabe, ainda ontem..."

Indo para os lados do teatro, na grande praça decorada e iluminada para o Natal, por fim, encontrou-o. A sua volta, como que a protegê-lo ou festejando sua chegada, o séquito: a velha desdentada que anda de joelhos, o Imperador Adriano, a cambada de mascates, olha-carros, flanelinhas, engraxates e biscateiros de toda sorte, babel da periferia. O casal de cegos cantores entoava o “Noite Feliz”, com sanfona e violão. No centro, ele, recostado em almofadões esfarrapados, junto a um poste de luz, mais magro do que nunca, sujo e barbado, em andrajos e, ai, as pernas amputadas. Tinha, finalmente, aderido. E demonstrava, no mais fundo do olhar, um jeito acalmado, como ela nunca lhe tinha notado antes.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 10/04/2015
Código do texto: T5201740
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.