as sereias mais humanas que alguém já viu
– Você tem um tempo livre hoje?
– Acho que sim – respondi. – Por que você não aparece aqui mais tarde?
– Não posso ir agora?
– Agora eu tô vendo tevê.
– Tá passando o que?
– Aquele falso documentário sobre as sereias.
– Huumm...
– É bem interessante, desde que você saiba que elas não existem de verdade.
– Escuta, eu acho que as sereias existem, sim. Não há nada de falso nesse documentário. Não há nada que prove que elas não existam.
– Como você acha possível existir um ser vivo constituído de metade peixe e metade homem?
– Da mesma forma que existem os ornitorrincos. Você sabe, eles têm bico de pato.
– São coisas completamente diferentes, Rita.
– Tudo bem, passo aí mais tarde.
Bateu o telefone. Percebi que seria uma noite difícil.
Rita entrou em contato comigo pela primeira vez quando eu editava histórias eróticas num periódico underground. A maioria delas era enviada por um tal de H. D. Humbert. Nunca cheguei a conhecer o cara pessoalmente, mas todos diziam que se tratava de um sujeito alto e gordo, e que havia substituído seus caninos por peças de ouro. Ele entregava as histórias curtas pelo meu chefe, o Sr. Brater, que chegava cedo toda manhã e as enfiava dentro da minha gaveta. Toda manhã eu abria a primeira gaveta e encontrava uma pasta com dezenas de histórias diferentes. Naturalmente, a maioria delas era descartada. As que passavam pela peneira, todavia, eram revisadas por mim e então publicadas semanalmente.
Humbert tinha, além dos dentes postiços e da pança larga, um gosto refinado por mulheres. Em minha oportunidade mais clara de encontra-lo, se não me falha a memória, ele estava dentro de um Mercedes na porta da editora – os vidros todos escuros e fechados –, mas quem saiu foi uma ruiva alta, com certos um metro e oitenta, usando um casaco de couro branco e jeans. Eu estava saindo para o almoço e vi quando ela atravessou a porta em direção à recepção.
Dali para frente, ela passou a aparecer no escritório e a acompanhar o Sr. Brater enquanto ele trazia as histórias até minha mesa. E foi dali para frente, também, que eu comecei a bater ponto no horário estabelecido.
Lembro perfeitamente a primeira vez que ela veio até mim – pasta em mãos – e sentou numa cadeira ao lado da minha.
– Essas histórias são uma porcaria! – ela disse.
– Algumas são publicáveis – respondi.
Ela me encarou por cima dos óculos.
– Aaah, que merda! Ele me faz ficar horas sentada na beira da cama escutando enquanto ele vai escrevendo e lendo essas porras. Sabe como é?
– Não.
– É assim: ele estaciona o carro em cima do jardim, nunca conseguiu dar a ré e colocar a porcaria na garagem. Ele deixa o carro no jardim e entra, mas entra com os sapatos sujos de lama e grama. É uma merda, porque sou eu que limpo a casa toda!
– Aterrorizante...
– Então ele me deixa esperando no quarto, janta, bebe o vinho, fuma o charutos... sabia que ele nunca me deu um charuto daquele?
– Crime, naturalmente.
– Não é?!
– Qual é a marca do charuto?
– Não sei, mas charutos são caros, não são?
– Bom, nem todos.
– Enfim, ele fuma os charutos e vem para o quarto com aquele cheiro de peido de cinzeiro.
– Se você não gosta do cheiro, porque se incomoda por ele nunca ter te oferecido um?
– Pelo glamour, querido. Você vê, eu sou uma dama, e preciso do glamour.
– Sem dúvidas.
– No fim das contas, ele nem me dá um beijo. Ele chega e senta na cama e começa a datilografar. O som daquilo é tão, mas tão, mas tão desconcertante!... Eu só queria poder manda-lo escrever suas pornografias em outro lugar.
– Mas ele não irá...
– Não.
Rita tinha esses olhos grandes e bem verdes. Havia algo imprudente neles. O cabelo dela estava cheio, naquele dia. Ela era muito magra, mas tinha coxas grossas e pernas compridas. E, com aquele cabelo volumoso, ela parecia ainda mais imponente.
– É foda – tentei continuar. – Uma coisa é certa: ele não vai se mudar e nem vai cuspir o talento em outro lugar. O que você pode fazer é cair fora dessa.
– E ir pra onde?
Finalmente.
– Eu não tenho nenhuma máquina de escrever em casa. E odeio contos eróticos.
Dessa última fala em diante – e isso aconteceu há quatro anos –, Rita vem me visitar, enquanto H. D. Humbert escreve sozinho, e fuma o charuto sozinho.
Rita era boa, muito boa – no início –, mas eventualmente perdeu a graça com a vida, não mostrava mais sua ânsia pelo glamour ou por ser uma dama. O que eu via agora era uma mulher comum com sonhos comuns, mas que havia trocado um artista por um revisor de contos eróticos. Então quando ela me ligava – apavorada de tédio, sempre – eu respondia “hum, sim, claro, humm humm, sim, certo”, e já bastava. Ela não queria mais ser conquistada. Não merecia ser conquistada.
O cara na televisão havia dito que aquele era o último break antes do fim do documentário. Eu estava ansioso para que Rita chegasse e visse que as malditas sereias realmente não existiam. Nunca existiram. Não eram seres pré-históricos nem extraterrestres. Não passavam de lenda, ficção.
Assim que ouvi o barulho do motor, busquei uma calça e vesti uma camisa. A merda da camisa estava suja de molho e cerveja, mas era uma mancha pequena. Fui até a porta e abri. Os olhos imprudentes ainda estavam lá, mas o corpo estava mais cheio, e o cabelo, ralo. As pernas ainda eram as mesmas, felizmente. As coxas não. As coxas haviam engrossado, o que era bom.
Ela me deu um beijo resumido e entrou.
– Depois de tanto tempo – ela disse – ainda me impressiono com esse lugar.
– Sim – respondi –, é bem característico.
Ela sorriu. Oh, ela tinha dentes lindos, também. Muito brancos e limpos. Busquei uma garrafa de Porto e servi em dois copos de requeijão. Eu não tinha taças. Nós brindamos e sentamos no sofá. O documentário tinha acabado.
– Eu queria ter chegado mais cedo – ela disse.
– Por que não veio?
– Você disse que estava vendo tevê.
– Não era nada tão importante assim.
– Você podia ter me avisado, então.
– Não vai se repetir, ok?
– Sei lá, às vezes parece que você não liga mais pra mim.
– Rita, em nome do que você considera mais sagrado, por favor, não comece essa discussão outra vez.
– Eu só pensei que você quisesse melhoras as coisas.
– Bom, aí tá um grande problema: as pessoas passam tempo demais tentando descobrir o que as outras estão pensando, e geralmente estão erradas. É ridículo! Vou te dizer uma coisa: as pessoas não pensam tanto assim, Rita! A gente gosta de ficar assistindo tevê ou lendo alguma besteira enquanto caga, sem se preocupar com os protestos ou com a crise econômica ou com a Copa do Mundo ou a inflação.
– Você deveria se preocupar com isso, porque todas essas são coisas importantes!
– É importante ficar deitado na cama, também. Se você tá meio fodido com alguma coisa, ficar deitado sem sair de casa pode ajudar bastante. É como se seu corpo estivesse recarregando.
– Ficar deitado o dia todo não é vida! – ela berrou.
– Claro que é vida – respondi. – É a minha vida.
– Não é vida, é desperdício.
Obviamente, uma vida não deixava de ser vida só porque era porca ou sem valor. Rita acreditava em sereias e não era lá grandes coisas, mas não deixava de ser um ser humano.
Ela terminou o vinho e continuou quieta, a cabeça apoiada em meu ombro. Desliguei a tevê e, pela primeira vez, o que eu mais queria era chegar no escritório no dia seguinte e revisar as novas histórias.
Nós dois sabíamos o problema com as mentiras. E sabíamos o que estava acontecendo. E infelizmente nós dois também estávamos cientes do que fora descoberto: não éramos menos falsos do que ninguém, éramos tão medíocres quanto minha vida e as crenças dela.
– Não te contei – ela disse. O fodido do Humbert não vai mais escrever. Disse que quer um tempo.
– Tem certeza?
– Acho que ele se cansou de escrever sempre a mesma coisa.
– Oh, Deus, isso é um bom sinal!
– É, não é?
– Eu estava cansado de sempre revisar a mesma coisa.
– É.
– Legal.
– Pensando aqui comigo... esse não era seu único trabalho?
– Porra!
Peguei o controle entre as pernas de Rita e liguei a tevê. Procurei o menu. Fui descendo a programação. Oh, sim, lá estava! O documentário sobre as sereias passaria novamente às onze. Em outra vida não menos porca, algum imbecil teria que lidar com a namorada também.