745-VOVÓ BIA E A BILIOTECA DE ALEXANDRIA-
Era aquela hora gostosa do entardecer, quando vovó Bia, sentada comodamente na cadeira de vime, na ampla varanda da casa grande da fazenda, pegava o crochê e retomava o trabalho aparentemente inacabável. Os netos quedam-se por ali, conversando e brincando, à espera do jantar.
Tavinho chega perto da avó e diz:
—Vovó, conta como é que era a biblioteca de Ale... Ale...
— Alexandria? — A meiga velhinha completa a palavra.
— Isto! Biblioteca de Alexandria!
— E porque você quer saber da Biblioteca de Alexandria?
— Uai, foi a professora que falou pra gente perguntar pra senhora.
— Ela mandou você perguntar prá mim?
— Bom... quer dizer... Ela disse que era para perguntar pro papai ou pra mamãe. Mas como aqui em casa é a senhora que sabe mais das coisas, escolhi a senhora para me explicar.
— Oh! Mas quanta honra! Você fala como se eu soubesse de tudo nesse mundo de Deus. Fica até difícil eu deixar de falar prá você o que sei sobre a biblioteca mais famosa do mundo de antigamente.
Deixando de lado o tricô, vovó Bia ajeita a longa saia que lhe chega aos pés, recosta-se e apoia os braços na poltrona.
— Dona Marocas disse que ela foi queimada. É verdade?
— A professora está certa. Infelizmente, na história dos desastres ocorridos com a biblioteca, aconteceram dois incêndios.
A memória de Dona Beatriz, a vovó Bia, é espantosa. Sabe dos fatos e das datas em que eles ocorreram, e as explicações para as calamidades.
— Vamos ver. A Biblioteca de Alexandria... — Olha pra o horizonte, como quem tenta ler no céu, e começa a narrativa. — Foi fundada no século III antes de Cristo, pelo faraó Ptolomeu III, para ser mais do que biblioteca, um centro cultural do Egito, onde se situava, e preservar tudo o que havia sido registrado em papiros, pergaminhos e outros tipos de registros, de escrita. Naquele tempo não havia os livros, como os conhecemos hoje. Alguns historiadores calculam que lá deveria ter cerca de quinhentos mil rolos de documentos. A maioria dos volumes vinha de Atenas, o centro cultural por excelência naqueles tempos. Havia uma secção para os tabletes de barro cozido com escrita cuneiforme da Síria e da Babilônia.
— Escrita cuneiforme? — Indagou Dorinha, que ouvia tenta a narrativa da avó.
— Era a maneira de escrever dos assírios e babilônios. Um alfabeto feito de símbolos em forma de cunha.
Dorinha e Carlinhos haviam se sentado nos degraus e prestavam atenção.
— Por quase trezentos anos, a Biblioteca de Alexandria cresceu e tornou-se um importante centro cultural. Além da cultura, mantinha a produção própria de papiros, e com isto, Alexandria passou ser também importante local de comércio. Mas no ano 48 antes de Cristo aconteceu a primeira catástrofe. Um incêndio de navios no porto propagou-se pelo cais e chegou até a Biblioteca, que ficava nas proximidades. O responsável pelo começo do incêndio nas galeras foi Julio Cesar.
Vovó fez uma pausa. Suas palavras ecoavam nas cabeças dos três netos, que a miravam com olhos de admiração.
— A Biblioteca foi reerguida das cinzas. Mas trezentos e vinte anos depois, isto é, no ano 272 da Era Cristã, novamente foi incendiada, e de novo, pelos romanos. Tal qual Fênix, entretanto, ela ressurge de volta a funcionar por mais trezentos anos. No ano 390 outra destruição, causada pelas lutas entres cristãos e muçulmanos. Mas a Biblioteca parecia indestrutível. A cada desastre, ela era reerguida, reconstituída com o que sobrava da catástrofe anterior e acrescentada de novos volumes.
Entre um desastre e outro, grandes eventos aconteciam na Biblioteca. Sábios e filósofos, matemáticos, geômetras, astrônomos e astrólogos ali se reuniam para discutirem ideias e fatos e teorias científicos. Talvez o mais importante tenha sido a reunião de 72 rabinos...
— Que são rabinos? — perguntou Dorinha.
— São sacerdotes da religião judaica. Aqueles 72 rabinos se reuniram para traduzir os livros de velho testamento para o grego. Dizem alguns autores que levaram exatamente 72 dias. Essa reunião é conhecida como a Septuaginta.
— E a Biblioteca? – um dos três netos perguntou.
— Infelizmente, foi totalmente destruída no ano de 641. Os otomanos ocuparam toda a costa norte da África, expulsando os cristãos. O General Amir, ao se deparar com a Biblioteca, ficou sem saber o que fazer e pediu instruções ao Califa, o governador geral de todo o Império Otomano. O Califa respondeu: “Se estes livros estiverem de acordo com o Alcorão, então não precisamos deles para nada. Se, por outro lado, se opõem ao Alcorão, destrua-os”.
O sol já havia se posto, e do interior da casa vinha um cheirinho bom de comida. Vovó Bia prosseguiu:
— O general Amir então ordenou que os volumes da Biblioteca de Alexandria fossem distribuídos pelos balneários da cidade, para serem utilizados como combustível para aquecimento de água. Foram necessários seis meses para queimar todos os livros.
Um chamado veio de dentro da casa: “A janta tá na mesa”. Vovó pegou sua cestinha de tricô, levantou-se e foi para a sala de jantar, seguida pelos três netos, saciados de conhecimento mas famintos da comida de verdade.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 8 de setembro de 2012.
Conto # 745 da série 1.OOO HISTÓRIAS