740-A SAGA DE SANSÃO ARAGÃO - 1A. PARTE -
Sansão Aragão era um gigante. Homem feito tinha mais de dois metros de altura, abaixava-se sempre que passava pelas portas ou pela entrada da senzala, aonde ia constantemente procurar as escravas mais jeitosas. Parecia ser um homem quadrado, tanto era alto como largo e corpulento. O corpanzil elefantino descansava-o na cadeira especial reforçada que o pai mandara fazer, após o filho ter desconjuntado diversas da mobília da casa da fazenda Pau de Jatobá.
Ao nascer. matou a mãe. que não resistiu ao trauma de parir uma criança de tal envergadura, recebido pelas mãos hábeis da velha Zuleica,escrava alforriada que atendia a quantos partos aconteciam na fazenda, entre as escravas, e em toda a região, não tendo, até o nascimento de Sansão, o desgosto de ver morrer nenhuma criança ou mulher parida sob seus cuidados, que incluíam a própria pericia e infusões e banhos de fortes ervas só por ela conhecidas, mais o resguardo de quarenta dias em quarto fechado, caldos de galinha engrossado com tutano de boi e gordura de mocotó.
Sobreviveu o menino aleitado por duas escravas que haviam também parido por aquela ocasião que repartiram o leite de entumecidos seios entre os próprios bebês e o filho de Herculano Aragão, o maior proprietário e mais importante fazendeiro das montanhas da província. Voraz desde as primeiras horas de vida, deixava pouco alimento pra os seus irmãos de leite, que, diferente de Sansão, cresceram raquiticos e sem forças para o trabalho escravo.
Foi o primeiro filho de numerosa irmandade, pois o pai, embora sentindo morte de Maria Das Dores, não demorou em se casar de novo, tão logo cessado o luto. Homem de ação, na força de sua macheza, sem meias-medidas nem meio-falar, arranjou a segunda esposa, apesar do temor que passou a inspirar como marido, pois correu mundo o comentário que, para gerar um tal filho, teria uma verga descomunal. Casou-se, enfim, com Carmela, num casamento arranjado com Coronel Serapião Gambeta, manco por força de ferimento na guerra do Paraguai,
Sansão foi deixado, no período de viuvez do pai, aos cuidados das amas de leite. E quando o pai casou de novo, o apego com elas era grande. Vivia engatinhando e depois, dando os primeiros passos, na senzala, entre os negrinhos e alguns mulatinhos das escravas. Ali cresceu, enquanto o pai emprenhava por diversas vezes a madrasta Carmela, gerando irmãs e irmãos para o pequeno esquecido. Numa sequência anual, nasceram três meninas (Adalgisa, Edalina e Odamira, , chamadas de Ada, Eda e Oda) e mais quatro irmãos de nomes tão arrevesados quanto às meninas, antes que a Carmela morresse de um tombo na escada da frente da imponente casa senhorial da fazenda.
Criado na senzala, longe do convívio dos irmãos, Argemiro foi percebendo e assimilando a carga de ódio dos escravos contra o pai. Aos doze anos, quando morreu a madrasta, era um rapagão que passava por homem feito, não fora o rosto imberbe com ar infantil. Os cavalos eram sua paixão e desde menino. Frequentava as baias de criação de cavalos, montava com perícia e gostava dos animais mais perigosos. Escolhia os potros mais arredios, com os quais tinha paciência, habilidade e segurança, pois suas longas pernas abraçavam o corpo do animaa e as mãos seguravam firmes na crina e não havia salto ou escoiceamento, relinchos ou manhas que alijassem Argemiro do dorso da montaria
— Esse minino vai ser domadô dos bão! — Dizia Bastião Banguela, o encarregado dos currais e de domar os animais rebeldes.
A criação dos sete filhos de Herculano com Carmela foi deixada a cargo das mucamas que cuidavam da casa-sede da fazenda. Soltos e largados, já que o pai estava sempre ausente, nas lidas da fazenda ou na cidade, entre negócios, mesas de jogo e visitas aleatórias à casa de Amélia Peituda, cafetina das putas da Rua dos Carros, assim chamada devido ao tamanho imensurável de suas tetas.
Antes de completar dezesseis anos, Sansão era homem feito. Enorme. Gigantesco. Desenvolveu o gosto pelas caçadas, para desgosto do pai. Cavalgava em montarias especiais, crias da fazenda, obtidas por cruzamento entre alazões e árabes, garanhões e éguas adquiridas de longe, a fim de melhorar a raça dos animais e ter sempre um cavalo que suportasse as oito arrobas do filho, que só saia com uma quadrilha dos melhores cavalos.
Saía acompanhado de dois ajudantes escravos, um dos quais, Leôncio, era perito em detectar pistas na mata cerrada e localizar as feras, mesmo quando escondidas em furnas de difícil acesso. Não eram longas as jornadas, já que a mataria começava rente à orla dos pastos e se estendia por léguas e léguas, em todas as direções, pela morraria a perder de vista. Pelos vales a vida silvestre e selvagem pululava, ao longo dos riachos que corriam céleres nos leitos pedregosos, para formar o Rio Gabirobas. Voltava das caçadas som mais de um troféu: onças, veados, tamanduás, pacas, cotias, macacos e outros habitantes da floresta. Não gastava munição com aves ou com os pequenos animais.
Sansão pouco se misturava com os irmãos. Tinha seu quarto na casa-grande, comia com o pai, os irmãos e irmãs na imensa sala que era, ao mesmo tempo, sala de jantar, de receber visitas e de música, já que as meninas tinham um piano num canto, no qual aprendiam tocar pequenas peças, ensinada por dona Domitilia Miranda, que vinha uma vez por semana ministrar treinamento às infantas. Enquanto isso, o jovem Argemiro preferia conviver com os escravos, e na senzala foi aprendendo naturalmente os mistérios da vida, as pequenas safadezas de bolinar as negrinhas e mulatinhas, e em seguida, o prazer do sexo, ensinado por uma mais desenvolvida e que com certeza já tinha sido iniciada por outro escravo. Tudo sem preconceito, muito naturalmente, como se o garoto branco fosse parte deles, escravos.
Um grande alvoroço agitou a fazenda: a libertação dos escravos, imposta por lei régia à qual não havia como escapar. De um dia para o outro, os escravos não eram mais escravos. No primeiro momento, a maioria dos escravos — pelo menos na fazenda Pau de Jatobá — não queria deixar a fazenda, preferiam ficar ali trabalhando pela comida, sem o regime das chibatas e com liberdade de saírem aos domingos. Mas a liberdade era contagiante, e aos poucos os ex-escravos foram botando o pé na estrada, saiam para viver na vila ou para procurar novos rumos.
Foi numa dessas levas retardatárias que Sansão saiu da fazenda. Acompanhou uma família e sumiu pelo mundo.
Quando deu pela falta do filho, chamou o capataz e ordenou:
— Jeremias! Pegue a espingarda e o Tição e vai caçar o bando de negros sem vergonha que levou meu filho junto.
O capataz não gostou da missão. Corria uma conversa entre os escravos que permaneciam na fazenda, segundo a qual Sansão fora enfeitiçado por uma das pretas da senzala.
— Foi a danada da Zuleika, a fia do Ditão Raizeiro. Ele aprontou um serviço que amarrou o filho do patrão na fia dele. Num adianta procurar, ninguém vai vê os dois. Nunca mais.
Ou porque Jeremias tivesse cansado daquela vida, ou porque os tempos eram outros e já não se caçava escravos como antes, o fato é que Jeremias também sumiu pelo mundo, nunca mais deu notícias.
O desaparecimento de Sansão Aragão foi fato mais sentido entre os irmãos e as irmãs que pelo próprio pai, naturalmente distante da criação dos filhos. Mas passado algum tempo, sem que notícias chegassem, nem o retorno de Jeremias acontecesse, foi perdendo interesse. E sobrepujado pelo novo casamento de Herculano Aragão.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 04.08.2012
Conto # 740 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS