Crucis
Acendeu mais um cigarro. Jurava ser o último da noite. Os pulmões pediam clemência.
“Cansei dessa história de viver em vão. Viver fora de mim. Existir em prol de outros, outras, todos, lançando-me a um segundo plano dificilmente alcançável.”
“Eu acho que você deveria repensar. Uma decisão dessas não é tomada sem que você reflita por uns bons dias.”
“Pensar em quê? Em quem? Você consegue se lembrar do dia em que nos conhecemos? Eu tive que te deixar sozinho no bar, com dois copos de vodka. Saí correndo porque havia sido chamado. Sempre sou. Mas não me dão a chance de eu ignorar os chamados, apelos, pedidos de socorro que me desagradam. Entende o meu problema?”
Enquanto isso, o homem, observando as brasas do cigarro do estranho conhecido, manuseava habilmente um objeto preto do qual conhecia todos os detalhes. A ponta prateada, o contorno enegrecido pelo passar do tempo. Segurava-o pela ponta e girava em intervalos minuciosamente calculados.
“Não entendo muito, mas a decisão é sua. Não me atreveria a interferir em suas observações e obsessões. Cada um escolhe o que quer”, e ria, com um único e visível dente de ouro, motivo de grande orgulho, levemente partido.
O homem, após a última tragada, lançou a ponta do cigarro em uma lixeira próxima. O objeto, que deveria ser branco, estava amarelado devido ao excesso de nicotina no ambiente. Tomou um gole do chopp quente. O líquido deixou-o com a boca extremamente amarga.
“Parece fel. Parece minha vida, cara. E aí eu preciso arrumar um caminho para ela. Sabe quando tudo te foge ao controle? Sabe, né? Eu não sei. E sabe por quê? Porque eu nunca tive o controle. Eu sou o descontrole. E isso me destrói.”
Bicou o copo escorregadio.
“E agora nem a merda da bebida existe mais. Entende o meu problema?”
O dente de ouro novamente reluziu. No fundo, o homem, que ainda mantinha sob sua mão o objeto preto, balançou a cabeça em concordância. Não lhe cabia mais discordar.
Os homens, levemente calvos, se encararam por breves minutos. O silêncio incômodo encheu o ambiente, que exalava cheiro de fumaça, bebida e suor. Forte. Tensão pairava sobre as cabeças.
“Já que você está aqui, faça o que te pedi. Acabaram o cigarro e o chopp. Não resta mais o que esperar.”
O barulho ecoou pelo espaço preenchido apenas por uma mesa e uma cadeira em que o homem estava sentado. O sangue escorreu, deixando vermelho o chão amadeirado. Entre dentes, os lábios uniram-se em um “obrigado”, saído da boca trêmula que, outrora, vociferava suas revoltas. Em sua mão, ainda sobre o revólver, permaneceriam os resíduos deixados pela pólvora.