738-VINHO DE LARANJA - Memória do Autor

Fazer vinho de laranja foi uma tradição anual na família. Quem tinha a receita era vovô. No pomar de sua chácara, entre dezenas de laranjeiras e outros pés de frutas, quatro pés de laranjas “de fazer vinho” eram quase que sagradas; ninguém tocava nas laranjas, reservadas para a produção anual do vinho. Mesmo porque as laranjas eram muito azedas.

Na ocasião de fazer o vinho, a família se reunia na chacrinha de vovô para ajudar nas diversas etapas. A colheita era mais para os netos, que subiam nos pés e derriçavam os galhos, numa operação de poucas horas. Uma tarefa que nós, os garotos, fazíamos em algazarra. As meninas, que não subiam nos galhos, ficavam sob as árvores, catando as frutas, e constantemente a gente acertava uma nas garotas.

— Ai, seu desgraçado, me bateu nas costas!

Teve um ano que conseguimos doze sacos de laranjas, e foi trabalho demais. Os tios e tias chegavam da cidade para descascar com facas bem afiadas, centenas de laranjas. Depois vinha a etapa de espremer para sair o caldo. Papai, marceneiro habilidoso, criara espremedores manuais, que, manobrados pelos tios mais fortes, espremiam mais rapidamente do que as tias conseguiam descascar. Estabelecia-se uma competição, na qual entravam também as crianças, descascando sem jeito com as mãozinhas pequenas e canivetes meio cegos.

Ao cabo de dois dias — geralmente um sábado e domingo — o trabalho estava terminado. O caldo era levado para dois barris de madeira, para ser decantado e fermentado. Restavam as cascas, que eram estendidas no terreiro café, para secar e servir de combustível no fogão de lenha. Secas, queimavam-se como papel. O bagaço era levado para o pomar e distribuído o redor das árvores, a fim de enriquecer terra.

A calda de laranja permanecia nos barris e diariamente era retirada a “borra”, ou seja, minúsculos pedaços da polpa, que boiavam. (1)

O cuidado com a calda, a adição de açúcar, e, seis meses depois, o engarrafamento, era feito pelo vovô. E a produção era distribuída entre os filhos.

Era um vinho dourado, forte e com acentuado gosto de laranja, naturalmente.

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Por volta de 1942, vovô Aníbal ficou doente. E para ser bem tratado, foi levado para a casa de tio Chiquinho, na cidade.

Quando chegou a época de fazer o vinho de laranjas, os filhos, preocupados com a doença do pai, não encontraram ânimo para a azafama, que, na realidade, era mais uma festa.

Meu pai enfrentou a tarefa de continuar a tradição. A casa em que morávamos era enorme, tinha uma grande dispensa no quintal, onde podiam ser realizadas as diversas etapas do fabrico do vinho, da espremedura das laranjas ao engarrafamento.

A dificuldade maior era trazer as laranjas para a cidade, e descascá-las. Papai era organizado. Conseguiu ajuda para a colheita das laranjas, fretou uma carroça para trazer as laranjas até nossa casa e os vizinhos colaboraram no descasque. Para a espremedura, bolou uma “maquina”: uma simples polia, ou roda movida manualmente, em cujo centro havia um cabeçote estriado: a laranja, cortada ao meio, era espremida de encontro a este cabeçote e num minuto, deixava o caldo numa lata apropriada. Era uma versão gigante dos espremedores de laranja e limão que apareceriam nas lojas muitos anos depois.

Ele seguia todas as etapas necessárias, e ao final, para engarrafar o vinho, com habilidade, recuperou uma máquina velha, usada vinte anos antes, por Tio Gordo na sua pequena fábrica de cerveja.

Meu pai seguiu a tradição do sogro, até muitos anos após a morte de vovô Aníbal. Todos os anos, dedicava boa parte de seu tempo, deixando a marcenaria de lado, para manter o costume.

O vinho era muito apreciado. Diferente dos vinhos de uva, feitos pelos velhos italianos da região. Saboroso, forte na graduação alcoólica, adocicado, era traiçoeiro, pois embriagava com poucos copos.

Houve uma safra em que ficou mais forte (talvez devido à acidez das laranjas). Foi no ano de 1957. Quando foi engarrafado, no final do ano, apelidaram-no de “Sputnik”, em alusão ao primeiro satélite artificial, lançado pela Rússia.

— “Sobe” como um Sputnik, foi a expressão de um amigo, referindo-se à rapidez com que o álcool chegava a cabeça.

A tradição foi interrompida no início dos anos sessenta e hoje só resta a lembrança, entre alguns netos, do vinho de laranja de vovô Aníbal Muschioni.

(1) Um incidente relacionado com a regirada da “borra” e as galinhas que ficaram bêbadas, está narrado em “Vinho não é para galinho” (#340), nesta Série Milistórias.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 27 de julho de 2012

Conto # 738 da Série Milistórias

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/04/2015
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