731-CHICO CERVEJEIRO- Narrativa de vovó Bia

Era mês de maio, mês de Nossa Senhora. Vovó Beatriz, que morava no Sítio do filho Alpineu, passava todo o mês na casa de Tio Gordo, na cidade, a fim de assistir as rezas do terço todas as noites, na capela do Colégio Paula Frassinetti.

Naqueles dias, era instada constantemente pelos netos Toninho e Arthur, a contar histórias ou responder as perguntas dos meninos. Numa daquelas noites, depois de voltar da reza, Toninho pergunta-lhe:

—Vovó, porque tem gente que chama o Tio Gordo de Chico Cervejeiro?

Toninho estava intrigado com o apelido do tio-avô. Sabia que o nome dele era Francisco Cúrcio, e para toda a família, era Tio Gordo — obviamente pelo porte obeso acentuado pela imensa barriga. A avó Bia era a guardiã das histórias não só do reino da fantasia, como da própria família e com a paciência de sempre, satisfez a curiosidade do neto.

— Quando viemos pra o Brasil, Francesco, como irmão mais velho, era quem tomava as decisões para nós. Por isso, Francisco, Nicola e eu fomos diretamente para Mococa.

— Mococa?

— Era uma cidade importante naquela época, pois lá terminava um ramal da Estada de Ferro Mogiana. Fomos com recomendação de procurar um patrício, o senhor Domenico Giorgio. Este senhor já estava há alguns anos no Brasil e tinha uma pequena cervejaria.

Nós ficamos morando numa casinha do quintal da família do senhor Domenico. Francesco e Nicola foram trabalhar na cervejaria, Eu era menina, tinha apenas dezesseis anos, e não sabia fazer nada. Fui ajudar dona Aurora, mulher de seu Domenico, na cozinha e na arrumação da casa. Ela era boa, me ensinava com paciência, As duas filhas do senhor Domenico frequentavam a escola, e de noite, me ensinavam a ler e escrever na nova língua.

Francisco era muito esperto e aprendeu logo a fazer cerveja. Tornou-se um empregado de confiança do senhor Giorgio. Mas era também muito ambicioso, queria sempre “melhorar na vida”, com dizia.

Uns dois anos depois, Francisco resolveu ir para Monte Santo, uma cidade um pouco mais além de Mococa, onde morava nosso primo Francisco Bruno. Era proprietário do Hotel Bruno, único da cidade, situado na praça central de Monte Santo. Tinha boa clientela, e nos empregou. Eu ajudava na cozinha, Nicola cuidava da limpeza e Francisco atendia os viajantes que chegavam. Foram anos muito bons, pois o nosso primo Bruno era um homem alegre, nos tratava como irmãos. Trabalhar no seu hotel era até divertido, com tanta gente entrando e saído a cada dia.

Passados alguns anos, novamente Francisco desejou mudar-se. Desta vez, veio para cá, para São Sebastião do Paraíso. Por essa época a cidade era pequena, mas estava crescendo. Havia muita construção, muita procura de tijolos e as olarias estavam dando dinheiro. Francisco comprou um sítio num local chamado Espraiado, e começou uma pequena olaria. No começo, era ele, Nicola e mais dois homens contratados como ajudantes. A olaria prosperou e ele ganhou um bom dinheiro, formou um capital. Mais alguns anos, e Francisco vendeu a olaria e montou uma venda na cidade, na Avenida Ângelo Calafiori, no bairro da Mocoquinha.

Todos os negócios que ele tocava davam certo, e a pequena venda tinha um movimento tão grande, que o local ficou pequeno para atender tantos fregueses. Comprou então esta casa que hoje nós moramos. Naquele tempo, esta rua se chamava Barão do Rio Branco. O negócio continuou prosperando. Por volta de 1915, com a experiência que teve com o senhor Giorgio em Mococa, ele montou uma pequena cervejaria, e fabrica de refrigerante. O refrigerante era chamado de gasosa e a cerveja tinha uma marca: Bersaglieri

— Era nome italiano?

— Sim, era lembrança dos tempos em que Francisco serviu o exército do Reino de Nápoles. Os soldados eram chamados de bersaglieri. A cerveja era muito gostosa.

Vovó Bia deu um suspiro, como se tivesse sorvendo um gole imaginário de cerveja.

— E depois?

— Durante muitos anos ele fez a cerveja e os fregueses passaram a chamar o Francisco de Chico Cervejeiro.

— E porque ele não faz mais cerveja?

— Em 1929 Francisco voltou à Itália, para visitar a mãe, que estava então bem velhinha, rever Salerno, onde nascemos, e a região onde vivemos até vir para o Brasil. A Itália, que era diversos reinos e domínios estrangeiros quando viemos para o Brasil, tinha sido unificada, tornara-se um pais, e fora devastada pela guerra de 1914 a 1918.

Foi uma viagem longa, durou uns seis meses. O negócio foi deixado aos cuidados do meu filho Alberto.

Como só Francisco sabia como fazer a cerveja, não tinha ensinado para ninguém, a pequena fabrica de cerveja e de gasosa parou de funcionar. .

— Mas até hoje continuam chamando o tio Gordo de Chico Cervejeiro.

E vovó Bia concluiu com o ditado popular:

— É que apelido é que nem cola. Quando pega, nunca mais descola.

Levantando-se, finalizou:

— E agora vamos dormir, que amanhã cedo você tem escola.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 07.07.2012

Conto# 732 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/03/2015
Reeditado em 30/03/2015
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