A rua das crianças

O homem do saco passava sorrateiro pela calçada sinalizando a hora de nos escondermos. E de fato nos escondíamos todos, amontoados, no jardim da Dona Isola, perto das margaridas. O Rex latia e nós nos apavorávamos com medo que o homem do saco fosse nos achar, mas em alguns minutos (que pareciam horas) ele já havia virado a esquina e se perdido pelo morrão.

Então era a vez de ocupar de fato a rua: queimada primeiro, depois o campeonato de bambolê entre as meninas – enquanto os garotos iam buscar suas pipas. Carros eram tão raros que às vezes tinham que parar e esperar enquanto uma de nós terminava sua fluida apresentação, ou um dos meninos dava linha suficiente. Em dias de vento bom era um festival de linhas e cores pelo céu; quando chovia, íamos para baixo da marquise da casa da dona Maria Costureira e lá ficávamos boa parte da tarde, conversando sobre as bobagens do mundo e rindo nossa risada infantil.

O cheiro do feijão ou do molho de tomate anunciava o almoço e o momento em que muitos de nós íamos ao bar do Duda em busca de um filão de pão, com o dinheiro contado enrolado na palma da mão. Já Cátia levava a caderneta cujas anotações de compras diárias o seu Waldemar acertava com ele no final do mês. Duda era gordo e bonachão e nos chamava de Filisbina e Catarina.

Compartilhávamos o carrinho de rolimã, a bicicleta remontada a partir de peças do ferro velho, o patinete colorido - tudo pela rua, calçada e asfalto indiferentemente. Dividíamos também o doce de batata doce do Duda e até a bola que dona Rosa, a casa mais temida, não devolvia. Pobre era a dona Thea, a casa mais bonita e uma das únicas campainhas da rua, alvo de nossos frequentes toca-e-corre. Os inocentes ficavam próximos, escondidos, tentando adivinhar que xingos seriam aqueles, murmurados entre dentes numa língua desconhecida.

No final da tarde quente o cicio dos grilos e os siriris em revoada eram nossa deixa: em breve, seríamos chamados pelas respectivas mães para o banho. O meu era um assobio longo e um curto. O da Emília era um breve “Mi” mas com a voz potente da dona Elza; o do Eduardo e seu irmão menor era mais discreto - a irmã mais velha chegava ao portão e apenas acenava com a cabeça, indicando a parte de dentro da casa. Só o Sérgio era mais resistente ao chamado materno, a ponto da dona Cotinha quase sempre sair com o chinelo nas mãos em busca do rebento suado, o cabelo empastado cheirando a galinheiro.

Depois disso a noite chegava mansa. Havia estrelas e um cheiro de sopa no ar. A rua ficava vazia de crianças e, como sempre, de carros. Apenas o homem do saco se aventurava, solitário e taciturno, sob os latidos insistentes do Rex.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "A cidade da minha infância"

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