O Pão Nosso de Cada Dia



- Trabalho? Repita de novo essa palavra, garota, e sua entrada nesta casa ficará proibida para sempre.
- Você fala a sério quando diz essas coisas?
- Mais do que a sério. Quero morrer velhinho sem nunca, jamais, em tempo algum ter pegado no batente, sem ter conhecido o que é a dureza da vida. Só pra você ter uma idéia de como penso: eu sinto muito mais pena ao ver na televisão uma reportagem sobre as pessoas indo para seus empregos, nas primeiras horas do dia, em coletivos superlotados, sabendo que aquilo acontece a elas todos os dias, do que senti ao assistir filmes sobre o holocausto. Ali, naquelas filas para os tais chuveiros que matavam, pelo menos eles iam pela última vez e o resto era o descanso eterno.
- Você nunca trabalhou na vida?
- Nunca. Nunquinha. Nem nas piores fases de minha vida, quando meu pai olhava para minha mãe e dizia que se preocupava com o meu futuro. Que eu era do tipo que queria que o mundo acabasse em barranco pra morrer encostado.
- Mas você estudou, não estudou?
- Prestei sempre muita atenção a tudo que os professores diziam, só pra não ter que me esforçar no dever de casa. Que, aliás, minha mãe fazia pra mim.
- E agora que seus pais morreram e lhe deixaram somente essa casa como herança?
- Pois é da casa que eu vou viver, minha querida.
- Vai abrir um puteiro?
- Deus que me livre. Dá o maior trabalho esse negócio de ser fora da lei. Vou reformar a casa, fazer de cada quartão desses uns três quartinhos, e alugar todos para um monte de moças estudantes.
- E não dá trabalho?
- Se desse, meu amor, eu descartaria de cara a idéia. Elas é que cuidarão do ambiente e, se possível, até de mim.
- Mas cadê o capital pra reforma? Você disse que os velhos não lhe deixaram dinheiro.
- Vai aparecer.
- Como? Sem trabalhar?
- Você hoje veio pra me irritar...Vai aparecer sem sacrifício algum. Você não conhece meu poder de pensamento positivo. Por favor, meu anjo, vá indo pra sua casinha antes que eu tenha o trabalho de colocá-la pra fora.
- Eu vou, mas se você reformar a casa, jure agora que vai me contar como conseguiu a grana, tá, Paulinho?
- Prometo. Se não der muito trabalho pra contar, eu te conto depois. Agora, Maria Helena do meu coração, suma daqui que eu vou tirar uma soneca na rede.

- E então, Leninha? Gostou da reforma? A casa não ficou linda? Os quatro quartos enormes viraram doze quartinhos ajeitados, e já tenho todos eles lotados de moças pagando aluguéis.
- Nossa mãe!! A casa ficou linda mesmo, Paulinho! Como é que você conseguiu a grana pra isso?
- Foi fácil. Tão fácil que posso até te contar porque não vai me dar muito trabalho e hoje eu estou descansado. Lá de cima, da janela de meu quarto, eu comecei a reparar em uma família que vinha à minha esquina colocar macumbas todas as sextas-feiras, à meia-noite em ponto. Na quarta ou quinta sexta-feira eu resolvi saber quem eram eles e, como dizem nos livros, esgueirei-me rente ao muro até o carro deles, que sempre deixavam meio longe daqui, e anotei a placa. No dia seguinte fui até um despachante amigo meu e pedi a ele que verificasse a quem pertencia aquele carro. Sabe a quem pertencia?
- Não tenho a menor idéia.
- Lembra daquele político, ainda mais safado que a maioria, que está mais encrencado que padre pedófilo pego em flagrante? Aquele que todo dia aparece na tevê em mais um novo escândalo?
- Sei, sei, sei quem é. É a figura pública safada do momento.
- Pois é. O carro pertencia a ele. E o cara, tão esperto, tão ladrão, tão convincente ao se eximir das culpas na mídia em geral, acredita piamente no poder da macumba e das coisas do além.
- E aí você se fez de espírito desencarnado?
- Daria muito trabalho, querida. Fiz melhor do que isso.
- Me conte.
- Se você ficar calada eu conto. Tenho uma antipatia desse negócio de ficar me interrompendo, cacete. Bem, eu peguei o telefone, procurei usar uma voz apropriada para pai de santo e disse a ele, que me atendeu logo que me identifiquei como Pai Adremáàv: “Meu caro doutor, aqui quem lhe fala é o Pai Adremáàv. Ontem, em uma sessão especial em meu centro espírita, que não é aberto ao público, recebi uma mensagem da entidade que lhe protege”- Ele então ficou desesperado para saber que mensagem era aquela que eu, ou melhor, o Pai Adremmav recebera. E eu fiz suspense pra valorizar a coisa. “Estou decifrando-a. Logo mais entrarei em contato novamente com o senhor”.
- Onde você tirou esse Pai Adremaav?
- Depois você ficará sabendo. No outro telefonema eu joguei a isca : “Tudo que o senhor precisa agora é vencer novamente as eleições para poder apelar para a imunidade parlamentar, não é mesmo, doutor?”- Ele confirmou laconicamente.
“Então tudo que o senhor terá a fazer será colocar, em uma grande sacola preta, de pano, costurada com linha vermelha, um real para cada voto que o senhor precisará para ganhar as eleições. O senhor pode fazer isso, doutor?”- -“Sem sombra de dúvida”, ele me respondeu no ato. “Então faça isso, doutor, e aguarde novas instruções da entidade. Eu as transmitirei ao senhor”.
- De quantos votos o homem precisava?
- Muitos. Milhares de votos pra não correr o risco de responder os inquéritos sem a cobertura de um novo mandato. Tava cagando de medo disso.
- E daí?
- Daí eu liguei pra ele e perguntei se a sacola estava preparada. Ele me garantiu que sim, que estava só esperando as novas instruções da entidade. E eu as passei para ele: “A entidade diz que o senhor foi encarregado de rechear essa sacola para aprender o que é caridade. Agora o senhor terá que levá-la àquela mesma esquina onde faz seus despachos e deixá-la por lá à meia-noite da próxima sexta-feira, à meia noite em ponto. Nem um minuto antes, nem um minuto depois”. Só isso? – ele me perguntou- e eu respondi, em nome da entidade: “Não, doutor, o senhor terá que esperar até que o representante terreno da entidade vá buscar a sacola. Do representante, naquela rua escura, o senhor verá apenas o rosto e os braços, mas espere até que ele pegue a sacola e suma. Só depois disso o senhor poderá ir embora em paz e com a eleição ganha. Mas tem um detalhe importante: o senhor receberá da entidade uma mensagem que deverá ler ao contrário cinqüenta vezes. Depois disso estará eleito sem sombra de dúvida.” Você acredita que o homem me agradeceu emocionado, quase chorando abertamente de felicidade?
- E quem é que foi buscar a sacola recheada de dinheiro?
- Euzinho. Tive o maior trabalho de me pintar com alvaiade, de comprar e vestir roupas pretas, e andar lentamente pela rua até a sacola, carregar aquele peso em volta do quarteirão, e de só voltar pra casa quando o safado sumiu dali com o carro dele.
- E o que é que estava escrito na mensagem?
- Estava lá o meu nome de pai de santo, mas desta vez completo: “Adremáàv Ocitilop Odafas”. Escreva esse nome e leia de trás pra frente cada parte dele.
Leninha seguiu as instruções e chorou de tanto rir:
- “Vá à merda político safado” !!!
- Trabalhar pra que, meu amor? Meu negócio é usar a cabeça.
- Mas o homem ganhou ou não a eleição? Sabe que não reparei nos resultados?
- Ganhou disparado. Ganhou com um discurso permanente, violento, contra os políticos safados em geral, no maior descaramento. O Pai Adremáàv deu o mote e o homem deu o bote.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 08/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T518765
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