Uma lição de estupidez
Ele ouviu o toc-toc na porta. Receou abrir. Poderia ser apenas um engano, aquilo costumava acontecer, pensou, tentando enganar a si mesmo. Mas poderia mesmo ser um engano, afinal naquele prédio existiam pelo menos duzentos apartamentos, além do que nos últimos meses ninguém dava as caras por ali, exceto os entregadores de pizza e da loja de bebidas. E se ela não veio em nenhuma das outras vezes, com certeza não seria hoje. E assim, por ausência de coragem ou excesso de covardia, sentou no sofá. Então as batidas aconteceram novamente. Trêmulo, ele levantou.
Não havia olho mágico. Ele se aproximou da porta. Exitou por um instante. Ajeitou a gola da camisa, olhou-se de alto a baixo. Estava tudo certo. Só podia ser ela. Abriu a porta com a coragem de um homem pacífico que por alguma ocasião precisa desferir um soco em alguém.
- Eu não disse que hoje viria, Betinho?
Ele olhou para ela, da cabeça aos pés. Fixou nos olhos, e por pelo menos trinta segundos, ficaram nessa. Ele havia convidado ela tantas vezes e esperado ela tantas vezes em vão que agora que ela estava ali ele finalmente notou que havia cometido um erro. Quando recuperou a voz, disse:
- Entre, Patrícia.- "Entre antes que eu me arrependa...", foi o que Beto pensou.
Ela entrou e sentou no sofá que ficava defronte para o dele, enquanto ele preparava dois copos, usando uma garrafa que se encontrava na mesa de centro. Conhaque. A única mulher que ele conheceu que também gostava de conhaque. Finalmente, após alguns segundos, ela falou, olhando para o copo:
- Bom... Como eu poderia começar....
- De preferência, pelo começo- arrematou ele, com a estupidez de um ginasial.
- Eu lamento por tudo o quanto lhe fiz... Eu andava confusa e seu comportamento começou a me assustar...- Ela parou de falar e sorveu um gole do conhaque produzindo um ruído semelhante ao que alguns idosos cometem quando estão tomando sopa. Ele calado, bebia e olhava para ela, que tornou a falar depois de um longo suspiro:
- Quando você tentou... Sabe, quando você tentou, se...
- Quando eu tentei me matar? disse ele, acendendo um cigarro longo, olhando para a chama diante do seu rosto, como se fosse o homem mais frio e imperturbável do planeta terra. Ela bebeu mais um gole do copo, agora maior que o anterior, chegando mesmo a reclinar a cabeça para trás, enquanto ele olhava para as barras sujas das calças que usava, com o copo nas mãos, impassível.
- Eu... Eu não entendi! Eu era muito precoce, nada entendia. Lamento que isso tenha sido assim. Mas você não me deu espaço. E depois, nunca entendi porque fez aquilo... Tive tanto medo de te perder quando te vi naquela cama de hospital que precisei te deixar! Disse ela, rompendo em prantos convulsivos.
Ele ouviu isso olhando ainda nas barras das calças sujas. Secou o copo e antes de preparar outro disse:
- Não é por isso que estamos aqui. Não é por isso que te chamei.- Pausa. -Além de não querer te ouvir, tenho algo a dizer, coisa que você deveria supor, afinal fui eu que pedi que você viesse. E depois de várias tentativas aqui está você. Pois eu tenho uma novidade. Não preciso das suas explicações nem das suas súplicas nem disso que você esconde debaixo das calças nem das suas lágrimas de crocodilo nem da sua compaixão de meretriz de bordel. Meu sofrimento acabou. Tenho, na verdade, uma notícia. Uma notícia que já há muito tempo venho fazendo segredo de você.
O silêncio aconteceu. Ele apagou o cigarro que estava no fim num cinzeiro prata e ficou em pé. Estava arrependido de depois de tanto tempo, ter finalmente encontrado ela. Depois de uma tragada, disse, com a fumaça ainda saindo da boca:
- Eu fiquei com você por quatro anos. Casados. E você sabe que tínhamos uma relação intensa. Colocando de outra forma, que fazíamos sexo como dois animais...- Pigarreou- Pois bem, não me relacionei com mulher nenhuma depois que você se foi, há seis meses...
Então perdeu as palavras, e no momento seguinte arremessou o copo já vazio na parede,estilhaçando o objeto de vido em vários pedaços, ao mesmo tempo soltando um grito feroz e gutural. "Estou bêbado, cometi um erro" pensou, deixando duas lágrimas caírem com simetria e simultaneamente de ambos os olhos.
Ela olhou assustada para ele, e recomeçou a chorar também. De súbito levantou e correu até o braço do sofá onde ele havia desabado.
- Aceite-me novamente, por favor! Aquele homem que conheci nada significa! Fiquei com ele apenas porque não suportava ficar sozinha! Pare de chorar, meu amor, estou de volta!
E seus hálitos de conhaque se encontraram, e depois seus olhos vermelhos também. Então seus lábios se encontraram. E se tocaram.
Foi um momento pra lá de bonito. Mas ele, ainda chorando a empurrou.
- O que foi?! disse ela.
- Vá embora, disse ele.
Ela insistiu:
- Como posso? Você está louco?
E ele apenas caminhou apressadamente até a porta.
- Saia IMEDIATAMENTE!- berrou furiosamente, puxando a porta pelo trinco, escancarando-a. Cometi um erro! Achei que tinha algo pra te dizer mas não tenho! Vá embora, sua vagabunda de segunda linha, antes que eu me obrigue a fazer com que você saia pela janela! Ah, e lembre-se que moro no QUINTO andar!!!
Ela sem nada entender, horrorizada pela circunstância obedeceu, saindo do cômodo correndo, como em alguns filmes onde episódios semelhantes se dão. Quando ele ouviu o carro dela dando partida lá embaixo do prédio, se aproximou da janela. Então colocou a mão no bolso e tirou o exame. HIV positivo. Precisava dizer a ela. Mas não teve coragem. Nunca teria.
Nem sempre é necessário ter, ele pensou, tornando a sentar no sofá.