Herdeiro

Ana Esther

(05/09/2012)

Intervalo para o almoço. Uma pausa que há anos me dou o direito de aproveitar para fazer o meu lanche reforçado (recuso-me a chamar o conteúdo da minha marmita de almoço ou de refeição ou de repasto) à sombra das árvores do horto-florestal que, para minha sorte fica próximo ao escritório.

Já faz alguns meses que comecei a observar um rapaz ainda jovem, que vem passear com seu cachorro, um labrador já meio velho, julgo até que já quase com o pé na cova. Nada haveria de singular naqueles dois senão fosse pelo carinho um tanto exagerado, aos meus olhos pelo menos, por parte daquele rapaz fino, com roupas de executivo. Ele desmanchava-se em atenções ao bicho que eu do meu banquinho cativo em que me sento dia após dia fico a observá-los. É bolinha para o cachorro buscar, é biscoitinho, é palmadinha e afagos, às vezes até sai um abraço! E o cachorro ali, firme, com ares de mordomo inglês.

Confesso que tamanho desvelo e demonstrações de afeto às vezes até me incomodavam. Comentei com meus colegas no trabalho. Falei tanto no caso que a D. Jucélia não se aguentou e um dia no intervalo do almoço ela prontificou-se a me acompanhar ao parque só para conferir com seus próprios olhos a famosa cena de amor de um rapaz por seu cachorro.

Lá estávamos nós no bom de um papo (nem eu sabia que a D. Jucélia era tão simpática) quando avistei o rapaz chegando,vestido com um terno particularmente elegante e muito caro, com certeza. Sem a menor dó pelo valor de sua roupa ele abraçou o cachorro e atirou uma bolinha para brincarem juntos. D. Jucélia olhou-me incrédula e levantou as sobrancelhas em sinal de total compreensão com os meus pensamentos.

Mas o tempo foi passando rapidamente, como sempre, até que um dia do meu banco de estimação observei o rapaz chegar sozinho com um rosto jururu... sem o cachorro. Desta vez não me contive, logo vi que o bicho devia ter morrido. Aproximei-me do jovem e, meio sem jeito, dirigi-lhe a palavra.

- E o seu cachorro?

Seus olhos umedeceram e ele ofereceu-me espaço em seu banco. Sentei-me. Em minutos fiquei sabendo de toda a história por trás daquele afeto insólito. Bem, o velho cão realmente morrera. O rapaz o havia “herdado” de sua mãe que falecera há uns dois anos. O cachorro desde que se formara na escola para cães serviu de olhos e companhia para a mãe do rapaz que perdera a visão devido à diabetes. Por nove anos o cachorro fora o fiel guia e sinônimo de vida para a mãe do rico executivo. Com o falecimento de sua amada mãe o cachorro aposentou-se mas o rapaz retribuiu do melhor jeito que pôde a tantos anos de dedicação canina.

Minha pausa para o almoço acabara. Retornei ao escritório e causei espanto e comoção geral nos colegas. Abracei cada um deles com todo o afeto do meu coração. Ah, dei até um beijo na bela face da D. Jucélia.

*Este conto foi publicado na 8a Antologia da Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses (2014).