A MÚMIA E O VELHO COM CORAÇÃO DE AREIA
Espichei a cabeça pra dentro de um quarto escuro e vi o Velho sentado em seu leito metálico e gritando por Lucille. O pobre homem implorava por Lucille ininterruptamente há dois dias e duas noites. Os médicos e os enfermeiros não se importavam. Creditaram o comportamento à loucura e decidiram que na manhã seguinte o enviariam à Colônia Psiquiátrica de Pássaro Livre; como explicou-me El Divino.
Puta que pariu, que merdas são os médicos; pensei. Bastou-me olhar aquele homem para perceber que todos estavam enganados, que na verdade ele estava morrendo porque seu coração estava cheio de areia. Mas ninguém acreditaria no meu diagnóstico.
Seguimos pela escada até o último andar. Meu amigo Arthur era amante de "El Divino", um boliviano de cabelos compridos, rosto de Índio e que era funcionário do hospital. Foi assim que arranjamos um quarto. Um quarto tranquilo, longe do tumulto da emergência, mas que, todavia, já acamava uma Múmia. Era uma Múmia enorme. Tão enorme que estando deitada ficava com meia perna fora da maca.
- Você se importa com essa Múmia enorme deitada aqui? – perguntou-me El Divino - respondi que não, que Múmias pequenas ou enormes não me incomodavam.
Arthur e El Divino estavam radiantes. Deram-me a bolsa com os meus suprimentos, deixaram-me uma carteira de cigarros, disseram que se eu precisasse de qualquer coisa era só lhes telefonar e sumiram pelos cotovelos dos corredores do hospital.
Antes de saírem Arthur me espiou por cima dos ombros, de costas, e pareceu preocupado em me deixar ali sozinho com a Múmia Enorme.
Dois putos; pensei. Dois putos que se preocupam comigo. Debrucei-me no parapeito da janela que dava para a Cidade e, como eu estava seguro de que as enfermeiras estivessem ocupadas, acendi um cigarro.
A noite estava escura e havia uma garoa leve entrecortando as raias de luz despejadas pelas lâmpadas dos postes. Desde criança e até hoje eu sou apaixonado pela chuva. O mal clima parece nos dispensar temporariamente das obrigações, e então nos sentimos bem, confortados, seguros, afastados das vicissitudes da vida. Ao longe, iluminado, havia um gigantesco outdoor vermelho em formato de coração e que anunciava, com enormes letras garrafais: LOVE FEST.
Eu refletia sobre o que aconteceria naquela Love Fest e sobre a amabilidade dos gays quando, espiando a Múmia, percebi que os seus olhos redondos insistiam no brilho da ponta do meu cigarro. “Se essa Múmia levantar daí e quiser me estuprar eu tô arrombado” - imaginei. E lhe ofereci um cigarro:
- Quer fumar Múmia? Fumar é bom: acalma, tranquiliza, mitiga os nervos...! – perguntava enquanto procurava a boca da Múmia por entre as bandagens.
- Fume boa Múmia, fume, fume, fume tudinho!
Servi 6 cigarros à Múmia e no sétimo eu lhe disse que o Velho que chamava Lucille estava com areia no coração e que padeceria de solidão muito em breve. A Múmia pareceu não concordar comigo, pois fechou os olhos incitando-me uma curiosidade.
- Você gosta de guerras, Múmia? – perguntei – e novamente a Múmia fechou os olhos.
- Então você gosta de armas, Múmia? – e fechou os olhos.
- Então com esse tamanho você gosta de lutas, né Múmia? – e fechou os olhos.
- Você é uma Múmia que faz filmes pornôs? – fechou os olhos.
- Você vai naquela Love Fest, Múmia? – fechou os olhos.
- Prefere homens ou mulheres, Múmia? – fechou os olhos.
- Você gosta de Shakespeare, Múmia? – fechou os olhos.
- Você gosta de Dalí, Múmia? Salvador Dalí; você gosta? – fechou os olhos.
- Já sei; você gosta de Chopin, Múmia? – fechou os olhos – Chopin nas madrugadas é bom, Múmia! – acrescentei
- Me acha louco, Múmia? – e fiquei de pé – ela fitou-me por uns segundos e outra vez fechou os olhos.
- Mas que porra, Múmia! - E uma fumaça começou a sair por entre as gazes da Múmia interrompendo o estribilho.
Primeiro a fumaça saiu só pela boca, e eu achei que fosse normal, que ela apenas estava aspirando. Até que começou a sair fumaça pelas narinas, pelas orelhas, pelos olhos, e quando passou a sair fumaça pelo orifício da traqueostomia. Com efeito peguei uma camiseta dentro da mochila e comecei a abanar.
Após uns 20 minutos abanando aquela porra parou. Novamente eu me pus de pé ao lado da Múmia, conferindo. Mas não havia mais fumaça. Parecia tudo sob controle. Considerei que, quiça, agora a Múmia gostasse de mim, se tornaria minha amiga:
- Ame-me Múmia; eu lhe salvei a vida! E agora vê se dorme um pouco.
Dei as costas e fui deitar. O Velho com o Coração de Areia não parava
de gritar. Enquanto o sono me derrubava lentamente eu contemplava o nome de Lucille nas paredes do quarto. Dormi por umas duas horas e lembro-me que naquela noite, pela primeira vez, eu tive um sonho realmente a cores. Bem verdade que foi um sonho “nonsense” – quase todos os meus sonhos são assim - sem um roteiro definido, um apanhado de cenas, de melhores ou piores momentos, mas foi um sonho colorido, com todos os matizes. Acordei maravilhado.
Eu quis contar aquilo à Múmia, quem sabe ela fosse imaginativa e entendida de sonhos, mas olhei para o lado e ela não estava mais ali. Que porra. Levantei-me, olhei atrás do banheiro e das cortinas, conferi se meu pau não estava duro antes de sair do quarto e fui procurar a Múmia.
- Hei, enfermeiras, o que aconteceu com aquela Múmia Enorme que estava ali?
- A Múmia Enorme morreu! - respondeu a enfermeira. Que era manca e feia.
- Múmias morrem? – perguntei – mas a Manca Feia deu de ombros, fez uma careta e saiu voando pela uma janela.
Voltei para o quarto. Ainda era madrugada. Que descoberta fantástica; Múmias morrem - pensava - tudo bem, agora o quarto era só meu e, além do mais, meu amigo Arthur não tem mais com o que se preocupar.
Seguia chovendo. Uma sirene de ambulância anunciava alguma merda lá fora. Acontecem merdas lá fora o tempo todo e às vezes parece que ninguém se aborrece com isso. Dá susto de pensar. Ninguém decide de uma vez por todas que não haverá mais merdas acontecendo. Governadores, Presidentes, Bilionários, Reis, Budha, Deus, sei lá...
Enquanto chove, enquanto Arthur e El Divino se chupam e se amam em algum lugar, enquanto um piano rompe o silêncio da noite ensaiando a Nocturne Op.9 No. 2, Múmias Gigantes continuam morrendo, e há Velhos padecendo de solidão, gritando por Lucilles, clamando e estendendo a mão tentando puxar um passado distante, ainda inexplicavelmente verde, que não obstante não para de se afastar, e a Terra segue lá, em sua arte perfeita de dar voltas, bailarina gorda, indiferente aos mendigos, às festas, às canções, às mortes e aos reis e presidentes.
O Velho com o Coração de Areia não parava de gritar. Desci até o quarto dele, sentei-me ao seu lado, na mesma cama, e falei-lhe francamente:
- Não meu Senhor, hoje Lucille não vem te buscar. Deixe-a em paz. Deixe-a e sinta a ampulheta se esvaziar da areia, desfrute a solidão dos poetas; com essa beleza que a hermética ciência não cura e será sempre incapaz de curar.