Asas Brancas & Negras - III [FINAL]

[Parte Três – Asas Pretas e Azuis]

Julho, 20 anos mais tarde, eu, casado, publicitário, morando em Natal e passando alguns dias das férias em Recife, resolvo visitar o bairro em que morei quando criança.

– Aonde você vai? – Pergunta minha esposa com voz de quem ainda está no mundo dos sonhos.

– Preciso resolver umas coisas. – Era minha palavra chave para pedir permissão para sair sozinho. Em outras condições, Vanessa me faria explicar exatamente que coisas eram essas, com quem e exatamente onde essas coisas seriam resolvidas.

– Ah...– Diz ela, apenas, antes de ser tragada novamente pelo sono. Sei que ela vai me ligar preocupada mais tarde, quando acordar de fato, mas são cinco horas de uma manhã de segunda e sei que ela, de férias, só vai acordar depois das dez – e de uma caneca fumegante de café extra-forte.

Antes das seis, já estou na Avenida Recife, deixando a praia de Boa Viagem para trás, seguindo em direção ao bairro de minha infância, me perguntando como estaria o Lago das Garças.

A primeira impressão que tenho, ao chegar em Longa Vista, é que o progresso econômico dos últimos anos por fim o alcançou – ainda que apenas de raspão. Ruas antes de terra batida agora estão asfaltadas. E estradas que não existiam, agora estão repletas de veículos novos em movimento.

Dirijo por aquelas novas estradas e antigas ruas, percebendo que quase tudo ali me é estranho. Paro e pergunto em algumas ruas e descubro que a minha antiga casa foi uma das que foram removidas para a construção de um retorno para a Avenida Nova da Consolação. E depois de me informar mais um pouco com os moradores, percebo que esta mesma avenida passa no lugar onde antes havia restos de casas derrubadas, e um pequeno lago que algumas garças e um garoto solitário costumavam visitar. Curiosamente, as pessoas se lembram bem dos terrenos baldios e das casas que foram derrubadas para a passagem da avenida, mas nenhuma entre as que eu entrevistei, se lembra de qualquer lago – com garças ou não. Fazem até aquela cara de quem percebe que está deixando passar algo importante quase ao alcanse, mas de nada lembram.

Estaciono o carro e vou até um bar e lanchonete na beira da Avenida Nova da Consolação. Ainda não são nem oito horas, mas eu peço uma Coca-Cola mesmo assim.

– Há quanto tempo fizeram essa pista? – Pergunto ao dono, um homem baixo, com poucos cabelos brancos sobrando na cabeça, e uma camisa aberta pela metade, enquanto observo os carros passarem em direções opostas nas duas mãos da avenida, procurando algo que confirmasse que aquele era mesmo o lugar onde o lago existira.

– Têm uns 20 anos, num tem, Rosa? – Grita o homem, enquanto destampa a garrafa do refrigerante com um estalo.

Me viro e vejo uma senhora morena, com uma camiseta branca, velha, com um Patolino sorridente, quase apagado, na frente. Há, no desenho, um balão de fala com algo que eu não consigo ler. A mulher diz:

– É... por aí... – num tom desinteiriçado.

– Vinte anos... parece que foi ontem. – Suspiro e ergo um pouco a vista, por acaso, até a fachada interna do Bar.

Está escrito

BAR DAS GARÇAS

em gordas e simpáticas letras vermelhas. Há até mesmo um desenho meio torto de uma garça sorridente bebendo cerveja com o bico colado no gargalo – ela sorri e bebe cerveja ao mesmo tempo, e com a asa que não está segurando a garrafa, faz um sinal de positivo com um polegar levantado.

Sorrio disfarçadamente e dou um gole no gargalo da minha garrafa.

– Posso fazer uma pergunta indiscreta, senhor? – Pergunto, pigarreando por causa da bebida gelada.

– Isso vai depender do seu tipo de indiscrição, meu rapaz. – Responde ele, acedendo um cigarro com um palito de fósforo, então cai numa risada que me parece um tanto exagerada. Penso que aquele dia está sendo ótimo para ele.

– De onde veio a ideia para o nome do bar? – Pergunto sem mais rodeios.

Ele para de sorrir e começa a coçar a rala barba branca sobre o papo.

– Ô, Rosa, de quem foi a ideia pro nome do bar mesmo, mulher? – Rosa está assobiando enquanto limpa as mesas de ferro do bar, acompanhando uma canção do Roberto Carlos que toca numa estação má sintonizada.

Sem parar de trabalhar, ela fala:

– Num foi de Vanessa, ômi... A menina queria porque queria esse nome... sabe lá Deus porque... Essa menina...

– Isso, mesmo. – concorda o homem, com o rosto iluminando-se novamente num sorriso de dentes amarelos – Foi minha filha mais nova que pediu... – ele dá um trago – ela devia ter uns cinco anos nesta época. – Diz, depois de soprar a fumaça – Hoje já tá uma moçona, só o senhor vendo...

Vanessa. O nome da minha esposa.

O dono do Bar das Garças continua falando, mas eu só consigo pensar naquela estranha coincidência.

Até que uma ainda maior acontece.

Uma borboleta, vinda não sei de onde, pousa no gargalo da garrafa de vidro transparente do refrigerante. Possui exatamente as mesmas cores que àquela que me mostrara o lago em minha infância e mais tarde me salvara do medo dos urubus.

Asas pretas e azuis.

Lá está ela novamente.

Não diz uma palavra; indiferente à vida, à morte, e ao refrigerante cheio de açúcar borbulhando embaixo dela.

Mas eu ouço o que ela diz ao mundo naquele discurso sem voz.

No coração, eu a ouço.

Ouço cada sílaba.

E entendo tudo.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 27/03/2015
Código do texto: T5185832
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