A IDADE DA INOCÊNCIA

 
 
Toninho sempre fora um menino bem comportado, obediente e meigo para com toda a gente, por isso era muito querido lá na rua onde morava. Com os seus seis anos, tinha entrado nesse ano para a escola e cumpria com afinco os deveres escolares. Já lia com alguma facilidade, fruto do trabalho de sua mãe e também da curiosidade que sempre evidenciara por tudo, sobretudo pela ciência.
Ao domingo ia com a progenitora, sem falhar, à missa das onze horas.
Quando o ano letivo terminou, no final de Junho, soube pela mãe que a sua prima Lu, filha mais velha de uma tia materna, viria passar alguns meses lá em casa, pelo menos durante o verão.
Também ouviu dizer que era casada mas não tinha filhos. O marido era camionista de longo curso e passava muito tempo fora de casa, pelo que ela estranhava a vida solitária e graças à benevolência da mãe de Toninho conseguira assim umas férias em Lisboa.
Quando Lu chegou, Toninho ficou logo cativado pela sua beleza. Inicialmente julgou-a muito mais velha que ele mas depois ela disse-lhe que tinha apenas vinte e quatro anos. Agradou-lhe o fato de desde logo o ter acarinhado, chamando-lhe o seu Petit Bijou, perante o riso da mãe e o seu embaraço.
A mãe dele, sabendo que Lu tinha muito jeito para costurar, arranjou-lhe logo uns trabalhos entre a vizinhança, que pelo menos lhe renderiam dinheiro para as despesas.
No final das tardes, abafadas pois a casa onde moravam tinha uma ótima exposição solar e por isso era muito quente nessa altura do ano, Lu deitava-se na sua cama a ler e Toninho vinha para o pé dela, folhear distraidamente revistas que a prima trouxera consigo.
Com o decorrer do tempo tornaram-se amigos inseparáveis, Lu tratando-o como se fosse um parente muito chegado.
Ela lia muito, sobretudo romances, devorava-os em leituras agitadas.
Devido a posturas de coluna incorretas, Lu por vezes queixava-se de dores nas costas e a confiança fez com que Toninho começasse a fazer-lhe massagens no dorso. Deitava-se de bruços, levantava a blusa até aos ombros e ele, pacientemente, espalhava com as mãos um óleo muito cheiroso, esfregando-lho nas costas, o que deixava Lu num estado de grande lassidão.
Uma vez em que estava imenso calor, Toninho viu-a deitada de bruços, toda nua, meio adormecida mas Lu, sentindo ruído e num gesto de pudor, tapou-se logo com uma toalha.
Passados alguns dias, numa noite de tempestade, Toninho, muito medroso com os trovões - a mãe tinha-lhe dito há tempo que representavam o Senhor a ralhar -  levantou-se de noite e foi deitar-se, tremendo, na cama dela. Lu a principio hesitou, depois chegou-se para o lado e deixou que ele deslizasse para junto dela. Inocentemente ficaram muito perto, ele sentindo o cálido calor do seu corpo, semidespido. Encostou o rosto ao peito dela e dormiu como um justo, sentindo o seu abraço carinhoso.
Este facto chegou ao conhecimento da mãe dele e esta, muito púdica e com forte formação religiosa, achou que aquele afeto tinha algo de exagerado e viu ali dedo do Diabo sob a forma de tentação carnal para com o seu pequeno.  Assim, de um dia para o outro, Lu sumiu, de regresso à terra onde sempre vivera. Não passou de meados de Agosto, essa sua estadia.
 
Toninho só voltou a vê-la passados muitos anos, quando do funeral da sua mãe.
Lu estava bastante mais redondinha, parecia até que aumentara para o dobro do volume, por responsabilidade dos três filhos e também efeitos da idade.
Quando a família se reuniu toda em casa dele, na sala, Toninho foi à cozinha beber água e Lu surgiu logo a seguir. Olhou-o longamente e de súbito, tomando-lhe o rosto nas mãos, beijou-lhe os lábios e com os olhos rasos de água, balbuciou:
- Sempre foste muito bonito, meu Petit Bijou.
E dito isto, abandonou a cozinha, juntando-se aos restantes familiares.
Após o funeral, nunca mais a viu.
 
 
 
 
 
 
 
Imagem: Desenho original meu - 1979
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 26/03/2015
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