Siena - Itália - 1965
As malas para a viagem são pequenas. Apenas poucas roupas e utensilios pessoais. Giacomo ainda não tem ideia de quão demorada será a sua permanencia.O trem partirá as vinte e trinta e levará cerca de oito horas para chegar ao norte da Italia. Lá na região da Lombardia, ficara numa pequena cidade, chamada Brescia, à cem quilometros da grandiosa Milano. Será uma viagem cansativa, sem nenhum conforto, e durará a noite toda. Saindo da estação, ele terá que ir direto para a empresa. Nesse tempo de viagem, ele espera escrever coisas para que não esqueça nada durante a entrevista. O terno a ser usado era o mesmo emprestado pelo amigo, aquele do apartamento, e usado durante as dezenas de entrevistas que ele já participara. A camisa branca, meio amarelada pelo tempo, denunciava a falta de dinheiro pra roupas novas. Ele juntou somente o dinheiro da passagem e algumas liras para pernoites em hoteis populares ou albergues para estudantes. Pela suas contas, só daria pra tres ou quatro noites. Pra comer, só Deus saberia como seria. Mas isso não importava agora.
Durante todo o resto da tarde, seus pensamentos só estavam voltados para a chance que se apresentara a ele. Ele sabia que seria dificil, mas era a chance de sua vida.
A noite vem chegando rapidamente, e mais rapida ainda era a queda da temperatura. Ele sai do banho, e começa a se vestir. A mesma roupa de sempre, está devidamente passada e pendurada no armario de madeira, cujas portas estão caidas. Sempre manteve as roupas pro caso de um chamado de ultima hora. Ele penteia seus cabelos e após ajeitar a gravata, passa em seu rosto a loção de barba que seu pai lhe dera, quando começaram os primeiros pelos. Ele então coloca seu chapéu, e o cachecol, e , tirando com as mãos a nevoa que embaça os vidros da janela, se olha como se fosse um espelho.
Antes da partida, ele checa cada um dos pequenos comodos do apartamento. Aquele ritual, antes corriqueiro, agora soa ,estranhamente, como uma despedida. Foi a cozinha, desligou o fogão surrado, o sistema de aquecimento da casa. Penduradas no varal improvisado, cuecas e meias umidas e encardidas vão ficar pra tras. Na estreita sala, somente um sofá de veludo ocre, com dois lugares e uma TV de valvulas. Na parede, o poster do AC Siena, o time de 1956, onde jogou seu tio sorridente na foto. No quarto, uma pequena cama de solteiro, que tinha ainda o colchão e o travesseiro feito por sua mãe na adolecencia. Ao lado, o criado mudo, com um porta-retratos da família, uma garrafa de Valpoliccela aberta e pela metade e um copo de aluminio com a estampa do Papa Paulo VI.
Ele então pega as malas, e olhando todo o pouco que tinha, tranca a porta e junto com ela boa parte de seu passado, como saberá depois
O caminho agora é a casa dos pais. Num casebre pobre, há alguns quilometros dali, viviam Victorino e Rosina. Ele alfaiate e ela costureira, costumavam trabalhar em casa, por quinze horas por dia. Alem de exercerem suas profissões, ele cuidava da criação de carneiros e galinhas, e da horta que mantinham no terreno. Ela cuidava da casa, filhos, e cozinhava pra todos.
Assim, tiveram tres filhos. Giacomo, o mais velho, hoje com 25 anos, Chiara a menina do meio hoje com 21 e Enzo o pequenino com 15. Giacomo se formou, Chiara parou os estudos e está prestes a se casar, e Enzo, que estuda e ajuda os pais em casa.
Vida simples, com sacrificios, mas sempre alegres e festeiros. Os dias eram pesados, mas o radio estava sempre ligado com canções italianas, e vez ou outra, via-se eles dançando e cantando no terreno. Aos domingos, a “pasta da mamma” era obrigatoria, e todos os parentes vinham a casa para almoçar juntos, em meio a cantorias, danças, brigas, discussões, palavrões e os olhos marejados, quando depois de alguns garrafões de vinho, a paz voltava a reinar. Toda semana era assim, e Giacomo adorava isso. Sabe ele que vai sentir muita falta de tudo, caso tenha que partir.
Ele chega à casa, e quando abre o portão do pequeno sitio, os irmãos correm pra abraçá-lo. Ele se dirige a sala, põe o chapéu e o cachecol no chapeleiro, e observa a mesa já posta, pois o tempo é curto. A comida que ele mais gostava no inverno estava na mesa. O belo Caldo de D Rosina, saborosissimo, feito com batatas, tomate, manjerona e carne de peito de carneiro. No fundo da tigela, se colocava vinho tinto seco, uma boa porção de parmesão ralado, e o caldo era colocado por cima, fervendo. O pão italiano que ela fazia, era fatiado e se molhava nas bordas do prato para acompanhar. O salame e a mortadela eram feitos e defumados pelo Sr Victorino, e ficavam pendurados por um barbante em cima da mesa de tabua, juntamente com um facão afiado onde as pessoas cortavam e comiam ali mesmo. Tudo isso, regado a um bom vinho artesanal, feito na vizinhança.
Nada faltou...apenas o sorriso no olhar dos velhos ..
O jantar transcorreu em quase um silencio absoluto. Pessoas tentavam puxar algum assunto, mas nada se desenvolvia. Só o barulho das louças e talheres era ouvido.
Encerrado o jantar, hora de partir, o Sr Victorino apenas aperta fortemente a mão de seu filho, sem deixar que ele visse seus olhos, e se recolhe ao quarto. Chiara, deu-lhe um beijo carinhoso no rosto e sorriu docemente, mas não falou nada. Enzo lhe deu, de volta, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Achiropita, que Giacomo lhe deu quando nasceu. A Vecchia Rosina o acompanhou até a porta. Sempre sorrindo, apenas balançou a cabeça positivamente quando ele pediu sua benção.
Ele finalmente virou as costas, e seguiu até a estrada de terra, sem olhar mais pra tráz. Por detráz da cortina da sala, a sombra de quatro cabeças o observavam até ele desaparecer na escuridão.
Victorino e Rosina então se deram as mãos e sorriram. Um sorriso de satisfação por ter conseguido dar ao seu filho o melhor que eles podiam. Mas um sorriso sofrido, de pessoas que como eles, veem seus filhos partirem pra vida. É a triste hora de entregar seus filhos para o mundo.
* Trecho do livro "Os Olhos de Kala Nera" , de minha autoria , em breve lançamento ..
As malas para a viagem são pequenas. Apenas poucas roupas e utensilios pessoais. Giacomo ainda não tem ideia de quão demorada será a sua permanencia.O trem partirá as vinte e trinta e levará cerca de oito horas para chegar ao norte da Italia. Lá na região da Lombardia, ficara numa pequena cidade, chamada Brescia, à cem quilometros da grandiosa Milano. Será uma viagem cansativa, sem nenhum conforto, e durará a noite toda. Saindo da estação, ele terá que ir direto para a empresa. Nesse tempo de viagem, ele espera escrever coisas para que não esqueça nada durante a entrevista. O terno a ser usado era o mesmo emprestado pelo amigo, aquele do apartamento, e usado durante as dezenas de entrevistas que ele já participara. A camisa branca, meio amarelada pelo tempo, denunciava a falta de dinheiro pra roupas novas. Ele juntou somente o dinheiro da passagem e algumas liras para pernoites em hoteis populares ou albergues para estudantes. Pela suas contas, só daria pra tres ou quatro noites. Pra comer, só Deus saberia como seria. Mas isso não importava agora.
Durante todo o resto da tarde, seus pensamentos só estavam voltados para a chance que se apresentara a ele. Ele sabia que seria dificil, mas era a chance de sua vida.
A noite vem chegando rapidamente, e mais rapida ainda era a queda da temperatura. Ele sai do banho, e começa a se vestir. A mesma roupa de sempre, está devidamente passada e pendurada no armario de madeira, cujas portas estão caidas. Sempre manteve as roupas pro caso de um chamado de ultima hora. Ele penteia seus cabelos e após ajeitar a gravata, passa em seu rosto a loção de barba que seu pai lhe dera, quando começaram os primeiros pelos. Ele então coloca seu chapéu, e o cachecol, e , tirando com as mãos a nevoa que embaça os vidros da janela, se olha como se fosse um espelho.
Antes da partida, ele checa cada um dos pequenos comodos do apartamento. Aquele ritual, antes corriqueiro, agora soa ,estranhamente, como uma despedida. Foi a cozinha, desligou o fogão surrado, o sistema de aquecimento da casa. Penduradas no varal improvisado, cuecas e meias umidas e encardidas vão ficar pra tras. Na estreita sala, somente um sofá de veludo ocre, com dois lugares e uma TV de valvulas. Na parede, o poster do AC Siena, o time de 1956, onde jogou seu tio sorridente na foto. No quarto, uma pequena cama de solteiro, que tinha ainda o colchão e o travesseiro feito por sua mãe na adolecencia. Ao lado, o criado mudo, com um porta-retratos da família, uma garrafa de Valpoliccela aberta e pela metade e um copo de aluminio com a estampa do Papa Paulo VI.
Ele então pega as malas, e olhando todo o pouco que tinha, tranca a porta e junto com ela boa parte de seu passado, como saberá depois
O caminho agora é a casa dos pais. Num casebre pobre, há alguns quilometros dali, viviam Victorino e Rosina. Ele alfaiate e ela costureira, costumavam trabalhar em casa, por quinze horas por dia. Alem de exercerem suas profissões, ele cuidava da criação de carneiros e galinhas, e da horta que mantinham no terreno. Ela cuidava da casa, filhos, e cozinhava pra todos.
Assim, tiveram tres filhos. Giacomo, o mais velho, hoje com 25 anos, Chiara a menina do meio hoje com 21 e Enzo o pequenino com 15. Giacomo se formou, Chiara parou os estudos e está prestes a se casar, e Enzo, que estuda e ajuda os pais em casa.
Vida simples, com sacrificios, mas sempre alegres e festeiros. Os dias eram pesados, mas o radio estava sempre ligado com canções italianas, e vez ou outra, via-se eles dançando e cantando no terreno. Aos domingos, a “pasta da mamma” era obrigatoria, e todos os parentes vinham a casa para almoçar juntos, em meio a cantorias, danças, brigas, discussões, palavrões e os olhos marejados, quando depois de alguns garrafões de vinho, a paz voltava a reinar. Toda semana era assim, e Giacomo adorava isso. Sabe ele que vai sentir muita falta de tudo, caso tenha que partir.
Ele chega à casa, e quando abre o portão do pequeno sitio, os irmãos correm pra abraçá-lo. Ele se dirige a sala, põe o chapéu e o cachecol no chapeleiro, e observa a mesa já posta, pois o tempo é curto. A comida que ele mais gostava no inverno estava na mesa. O belo Caldo de D Rosina, saborosissimo, feito com batatas, tomate, manjerona e carne de peito de carneiro. No fundo da tigela, se colocava vinho tinto seco, uma boa porção de parmesão ralado, e o caldo era colocado por cima, fervendo. O pão italiano que ela fazia, era fatiado e se molhava nas bordas do prato para acompanhar. O salame e a mortadela eram feitos e defumados pelo Sr Victorino, e ficavam pendurados por um barbante em cima da mesa de tabua, juntamente com um facão afiado onde as pessoas cortavam e comiam ali mesmo. Tudo isso, regado a um bom vinho artesanal, feito na vizinhança.
Nada faltou...apenas o sorriso no olhar dos velhos ..
O jantar transcorreu em quase um silencio absoluto. Pessoas tentavam puxar algum assunto, mas nada se desenvolvia. Só o barulho das louças e talheres era ouvido.
Encerrado o jantar, hora de partir, o Sr Victorino apenas aperta fortemente a mão de seu filho, sem deixar que ele visse seus olhos, e se recolhe ao quarto. Chiara, deu-lhe um beijo carinhoso no rosto e sorriu docemente, mas não falou nada. Enzo lhe deu, de volta, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Achiropita, que Giacomo lhe deu quando nasceu. A Vecchia Rosina o acompanhou até a porta. Sempre sorrindo, apenas balançou a cabeça positivamente quando ele pediu sua benção.
Ele finalmente virou as costas, e seguiu até a estrada de terra, sem olhar mais pra tráz. Por detráz da cortina da sala, a sombra de quatro cabeças o observavam até ele desaparecer na escuridão.
Victorino e Rosina então se deram as mãos e sorriram. Um sorriso de satisfação por ter conseguido dar ao seu filho o melhor que eles podiam. Mas um sorriso sofrido, de pessoas que como eles, veem seus filhos partirem pra vida. É a triste hora de entregar seus filhos para o mundo.
* Trecho do livro "Os Olhos de Kala Nera" , de minha autoria , em breve lançamento ..