O Jogador de Búzios
Mais do que ler os búzios que joga no tampo da mesa carcomida, ele lê o rosto de quem o consulta. Exatamente como fazem os médicos apressados que, cumprimentando o doente lêem a temperatura, a humidade e o tónus dos músculos da mão. Já olharam para os olhos salientes e para o pescoço e podem, portanto, começar a passar a receita para o distúrbio da tiróide. O homem dos búzios também receita conselhos que ver para lá das rugas, dos olhares, da postura de quem se senta à sua frente é fácil para quem, como ele, vem de longe sob carências, sofrimento e pancada. Para quem, depois de tanto caminho amargo, sabe o valor das lágrimas, pode saber a força dos suspiros e medir a distância que alguns trazem em si. Longe de alheamento, de amargura, traumatismo forte. Ele, o jogador de búzios, cruza os dados do corpo e regista os da alma. Depois, observa de novo em silêncio e confere a valia dos dados. Os males de amor sofrem-se sempre torcendo as mãos, mordendo os lábios, já os sarilhos dos negócios se enfrentam com uma luz crua nas pupilas. Os que querem saber da sorte como degrau de outra vitória, vigiam o homem a frio, serenos, prontos a esmagar quem for preciso. Ele, o homem que joga os búzios, aprendeu a ler, a conjugar registos e sabe esperar o tempo que for preciso antes de abrir a boca para a sentença. Algumas vezes não acerta mas muitas outras aponta a origem do mal, indica o caminho e diz onde há a água para a sede de quem lhe paga os recados. As suas angústias, essas, sepulta-as o mais fundo que pode e para as resolver nunca joga os búzios.