Os pássaros azuis que tu pintaste

foi num banquete oficial, e queriam comer os pássaros azuis que tu pintaste, e eu disse esses não, esses não se comem, com os olhos sim, vá lá, mas não vão alvoroçar os bichinhos, eu os prezo muito e tou na guarda deles, olhem lá; e enquanto os bolos dietéticos, o arroz integral, os que gostoso, os que bom que tá, o bife de soja, de glúten, a torta de maçã, os sucos de melancia e tomate, o chá chinês, o chá de jasmim, tudo rolando à vontade, eu os policiava discretamente, os pássaros azuis que tu pintaste; e lá estava o conde, o protonotário, o dignitário, o enviado da rainha, o chefe de gabinete, o ministro da comunicação social, os empoados sampson & sons, o representante do papa, que ele mesmo não pôde, estava ferido, mas está bem graças a deus, e estavam lá a alma de bob¬by sands, de john lennon, assim meio ressabiados, clandestinos, meio fora de lugar, eles enquanto no aguardo de instâncias superiores para serem canonizados, e todos, enquanto mastigando, comendo com os olhos os pássaros azuis que tu pintaste; e eu todo lá, enfatiotado, no meio dos homens, aquela salada, havia russos e americanos, diplomatas gordos e de olhar infeliz, ávidos por segredos e informações, atletas magros e preocupados, donos de seus corpos apenas e de nada mais, havia artistas, sim, também havia deles, e todos os presentes se desentendendo pacificamente, monologando a muitas vozes só se compreendendo quando batiam os olhos numa mesma parede, onde ameaçavam vôo os pássaros azuis que tu pintaste; e eu naquela responsabilidade de proteger a tua arte e, ao mesmo tempo, divertir os convivas, sabe, estava lá até aquela estoniana, Larissa, a que se crê ainda do-na de mim - e quem é dono de quem neste mundo? - havia lá outras, feministas, complotando na sala de fumar, que tomaram de assalto às patentes masculinas, que, aliás, o acataram condescendentemente está na moda o feminismo, não está? havia lá também as fúteis, balangandando os seus penduricalhos, brochas, brincos , brilhantes, pulseiras, bolsinhas, anéis, alianças, desfilando caros panos, vestidos, xales, sedas, talcos, plumas e perfumes, havia delas também, todas, enfim, maravilhadas com as asas azuis dos pássaros que tu pintaste, e foi uma mulher, diziam, quem diria, e ia assim a cena, a ceia, até se abrir o mundo numa guerra, onde quando irromperam na sala do banquete, a sala dos tapetes escarlates, os desgraçados, os desvalidos, os oprimidos todos deste mundo, candidatos certos a futuros opressores, a ditadores brabos como cobra cascavel, prontos pra virar a gente ao avesso e o mundo de pernas para o ar, e aí, que não sou tolo, fujo por saber que não há de haver compaixão nem conversa fiada, que nos vão guilhotinar a todos, ah se vão, e fujo, mas fujo como camões salvando os lusíadas, que por nada deste mundo ia deixar pra trás os pássaros azuis que tu pintaste; fujo, escapulo pela avenida principal aqui da corte, e te prometo que até hoje conservo em gaiolas de boa taquara os pássaros azuis que tu pintaste, na esperança de os devolver às tuas mãos um dia, se não morro nem morres antes, ou na espreita de uma campina, outra moldura, uma paisagem mais livre e bela, onde os soltaremos, os frágeis, belos, leves, bravos pássaros azuis que tu pintaste.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 23/03/2015
Código do texto: T5180208
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