Piquitita

Lá vão os dois virando a esquina do beco, o mais velho e a piquitita. De mãos dadas. A mãozinha dela é desse tamaninho, benza-a-deus, os nozinhos dos dedos suados atarracados na mão dele, com medo do cachorro brabo do velho Getúlio, o que ficou doido na guerra. Gracinha de menina morena! Que bom essa mãozinha na sua, protegida, mas protegendo também. Virada a esquina, na baixada, o sobrado caindo aos pedaços. É descer um pouquinho a rua calçada de pedras pé-de-moleque, e logo estão na casa da professora particular. O sobrado. Construído quase em cima do corgo de bosta, os esteios de madeira rombudos saindo centenários da beira d’água. Debaixo da casa, o porão sem paredes, a lenha empilhada e os poleiros das galinhas. Quando o sol aperta, o vento traz a catinga, porque o corgo em agosto é pouco mais que um mijinho d’água.

Ô de casa, a muda vem atender. Fica tomando sol na janela da rua, cochilando, a porta pesada sempre aberta, as cadeiras inclinadas por causa do soalho já fora de prumo. Torta a muda, corcunda, a cacunda quase mais alta que a cabeça. Com o tempo, vai acabar arrastando o nariz no chão, pensa o mais velho. Cara boa, boca murcha, a muda leva os dois pra dentro. Dinha já vem, diz sem dizer, olhando pra porta que dá pra cozinha, os olhos baixos, rindo sempre. A muleta pesada anuncia a professora perneta. Tunc, tunc, bate seca no soalho, que medo de tudo despencar, e a gente cair no corgo imundo. Deus me livre, pensa ele, mas não consegue ficar sem olhar pela greta do chão, a água brilhando entre as pedras escurecidas, correndo arisca no sol de agosto, as poças fedorentas.

A piquitita fica num canto, boazinha. Brinca com a boneca de louça que ganhou no Natal passado, da tia rica que mora em Goiás, o lugar mais longe do mundo. A mãe não pode cuidar de Telminha mais a miudinha de colo, duma vez. Dinha não se importa, a menina vir com ele sim, é tão quietinha, não atrapalha nada. Só larga a boneca pra ir mijar, a muda leva. Não embirra com nada, entertida no brinquedo inventado. O mais velho ali nos redondos e quadrados, a ponta do lápis feita com faca cega. De vez em quando, com o rabo dos olhos, mira a muleta largada em cima da mesa, o pé grosso forrado de couro apontado para a sua cara, tão perto que dá pra sentir o cheiro da poeira. Às vezes, quando fica difícil desenhar uma bola direitinho, Dinha chega do lado, segura na mão, vamo lá, num é difice, cê dá conta. Um bafo de banha de porco e morrinha de pouco banho entram pelo nariz do menino adentro.

Madorna no mundo, zoeira só dos galos do meio-dia abafado. De vez em quando, a boneca que chora nas mãos da piquitita ou a conversa dela, sozinha: sussurro em língua cigana. Dinha sai de quando em vez, vai lá dentro, a muleta tunc-tunc, Dinha tomba pra um lado, para o outro, torre inclinada, navio no mar, cambaleia, Deus a segure. Foi doença ruim, tiveram que lhe arrancar uma perna, do contrário passava pro corpo todo, essa doença não tem cura, ela morria. Todo mundo diz, mas ninguém fala o nome mesmo, que é perigoso. Mas pegar não pega não, que isso. Mas preferia não ficar tão perto dela, quando vem ajudar a fazer o rabinho do número dois, ou o lacinho do oito.

Ali pelas duas horas, a buzina do padeiro, o balaio pesado de pão fresquinho coberto de pano branco. A muda é que sai para comprar. Depois do café, é hora de ajuntar caderno, lápis, borracha. Vam’imbora, a piquitita apanha a boneca e vem mostrar que o choro enfiou pra dentro das costas. Maçada, a boneca não chora mais. Terá conserto? Papai claro que conserta. Quando saem, mãos dadas de novo, o mais velho sente que a pele dos dedos dela está seca da poeira do soalho. As velhas são muito asseadas, só não são é de muito banho, mas mês de agosto é uma peleja deixar a casa limpa.

Na volta pra casa, brincar no quintal. Mal cercado, cheio de buracos na tela, é o mesmo que o quintal deles e o do avô serem um só. Todo dividido em regiões: as moitas de bananeira, goiabeiras e mangueiras mais longe de casa, ao pé da qual a horta com tudo que é preciso. Aqui e ali, um abacateiro. Os ipês amarelinhos agora em agosto, uns quatro, cinco, lá pras bandas do corgo. Nas divisas, os bambuzeiros, que servem também de proteção na beira do corgo, pra terra não desbarrancar. Um mundo. Pés de café pro gasto, ramas de chuchu, milho vai tomar conta de tudo no fim do ano, chiqueiros de porcos. Uma festa, um país de grande.

Hoje, enorme fumaça queimando os olhos, cheirando no ar, pois o avô anda limpando e queimando tudo pra plantar. O bambuzal estralando, as línguas de fogo lambendo o ar e sumindo, as fagulhas sopradas para o céu, dançando enlouquecidas. Há que ter cuidado, senão passa pro vizinho. Nos fundos, não tem perigo, o corgo de bosta passa na divisa. Mas pros lados...

- Arreda, minina.

O avô tem medo de ela se queimar. Vai lá e carrega a miúda pra longe do perigo. Ela fica assanhada vendo fogo no quintal, pensa que vão sapecar porco.

- Num chega perto, minina. Que maçada!

O mais velho leva Telminha dali. Tem outra coisa boa pra se fazer, aproveitar que está todo mundo com sentido na queimada. As revistas do tio que anda longe, lá na casa da avó. A entre-ele-e-a-piquitita descobriu de novo o caixote de madeira onde o tio guarda a coleção de revista em quadrinho. Agora, debaixo do catre do quarto velho, o cheio de buracos no soalho. É só entrar, tramelar a porta e ir vendo. Revista proibida, “para maiores de treze anos” A mãe já disse não, mas a curiosidade é mais forte que o medo de levar uma coça. Uma das revistas é tão antiga que ainda nem é em quadrinhos. Tem um desenho grande, na metade de cima da página, a metade de baixo é só escrito. Essa não tem graça. Têm graça os Tarzan, Roy Rogers, Guri, Cavaleiro Negro, Rex Allen, Zorro, Príncipe Valente. Umas são coloridas, com desenho de deixar babando de bonito.

Distraídos na leitura, ele e a entre-ele-e-a-piquitita não vêem a menorzinha engarranchar o pé na greta do soalho. O jeito é chamar a avó, apavorado. Telminha grita de dor, ele quer gritar também, mas a garganta tá tapada, está rouco demais, vó, acode, acode, mas a voz não sai, como deve ser horrível ficar mudo...

A avó não bate em ninguém, afobada porque a perna da menina ficou roxinha, carece de botar cataplasma, uma meizinha qualquer. Até esqueceu de contar pra mãe. Antes assim. O mais velho sempre é que apanha nessas horas. A irmã segunda é doentinha, Telminha pequena demais. Aí, a vó esconde o caixote de revistas noutro lugar, mas quá: a do meio sempre futuca e acha. Daí a uns três dias, já se esqueceram de tudo e estão trancados de novo no quarto velho. Os três. Mas quando o tio que anda longe chegar... Tem um ciúme dessas revistas! Ele é bonito e mora no Rio de Janeiro, um lugar pra lá de Belo Horizonte. Trabalha em navio, tem olho azul e uniforme branco, usa um boné imponente que nem os artistas dos quadrinhos.

Um dia, a mãe bota Telminha de castigo, presa dentro do cômodo de banho. Tira ela, mãe, tadinha, eu fico no lugar dela, a menina chora desesperada lá dentro, ele implora, não agüenta escutar o berreiro da tadinha, tira ela, que dó, por quê? Quando a mãe destranca a porta, ela escapole correndo, dá um pulo no pescoço dele, as mãos geladinhas de medo, suando frio, chorando ainda, as lágrimas descem mornas pelas costas dele. A mãe, arrependida, parece, quase que destampa a chorar também. A menininha não tem nem quatro anos, que judiação, não sabe direito o que faz.

- Se falá bobage outra vez, conto pra sua avó. Cês sabe que ela cunserta ocês é cum tição de fogo na língua, né?

Uma noite, a piquitita acorda chorando. Dor de barriga. A mãe leva o pinico, ela não faz nada. E continua chorando a noite inteira. De manhã, o doutor chega de jipe, apalpa, apalpa, escuta, escuta:

- É bicha, sentencia.

Passa o lenço na careca suada e receita óleo de rícino e semente de abóbora. Ela põe umas lombrigas, fica uns dias boa, a dor volta e não pára mais.

- Tem de levar pra Belo Horizonte. Aqui não tem recurso.

A jardineira demora quase seis horas pra chegar a Belo Horizonte. O mais velho vai uns dias depois, com o pai, ver a menina internada. Vomita no caminho duas vezes, o chofer é conhecido, pára sempre que tem criança enjoada. Uns aproveitam pra cagar no mato e voltam carregados de carrapato e carrapicho. A jardineira não podia ser mais velha: desmanchava. A poeira entra de baixo, por cima, pelas vidraças. Agarra no cabelo, entope o nariz, os solavancos embrulham o estômago. De noite, quando for assoar o nariz, vai sair tijolo, quem sabe. A mala em cima da jardineira, coberta com lona, amarrada com cordas, pro caso de chover. Quando abrirem, a roupa vai logo pra lavagem, toda cheia de terra.

Em Belo Horizonte, fica na casa da tia, sozinho. Sozinho, porque os primos são bem mais velhos, não gostam de brincar com ele. O pai some de casa o dia inteiro. Volta bêbado ao apartamento, um cheiro azedo quando chega perto pra beijar, a fala enrolada, soluçando às vezes. No hospital, a mãe de olho inchado. Telminha fica boa uns dias, outros chora dia e noite. Dói demais, mamãe, e aperta a barriga no mesmo lugar de sempre. Já na barriga dele, o que nasce é um nó. O nó sobe pela goela acima e quase vira choro. Se fosse em casa, debaixo das cobertas, chorava. Aqui não. O hospital está sempre cheio de gente de branco, tem vergonha.

Mas logo esquece: muita novidade. O apartamento é limpo e pintado de azul, tem geladeira, o rodapé vermelho, retinho, feito com ciência. A rua da tia, asfaltada, tem passeios, gramados, árvores dos dois lados, sem poeira, espinho ou caco de vidro. Ainda há os bondes, os lotações, os ônibus elétricos com os cabos soltando faísca azulada de vez em quando. No centro, a Avenida. Muita árvore, tanta que dá sombra o dia inteiro. No meio dela, os carros de praça parados, esperando fregueses. Povo que fala diferente o dali, sabe-se logo quem é do interior, melhor não dar na cara, vão rir de nós.

Domingo amanheceu bonito, e o pai os leva ao Parque Municipal. Andam de canoa, a menina nem parece doente. Ri que é uma beleza, a borboleta, corre pra todos os lados. O pai molha os cabelinhos dela com a água da lagoa, as folhas podres no fundo. Quando descansando na grama, vem o lambe-lambe. A menina fica quietinha, enquanto o retratista enfia a cabeça embaixo do pano escuro e ajeita a máquina. A mão direita de fora, fazendo sinais, a voz vem lá de dentro, olha o passarinho, olha o passarinho, a mão esquerda puxa o cordão, ele reaparece. Cara simpática a do retratista. O fundo é um coqueiro nanico, de palmas compridas que se esparramam no chão gramado. Na foto, ela aparece de mãozinha na cintura, a outra segurando uma bolsinha, sainha estampada descendo abaixo dos joelhos, blusinha clara, pulseirinha, meia e sapatinho branco. Na cabeça, um diadema puxando-lhe os cabelos para trás, que a faz parecer mais linda. Os dentinhos da frente estufando o beicinho, que é pra ninguém nunca mais se esquecer dela.

Na volta, vem boa. Vem contando estória do hospital. Ficou amiga de uma tal Geraldinha e não tira esse nome da boca. Por culpa da doença ruim, cortaram-lhe uma perna, Geraldinha tem de andar de muletas, que nem a professora do mais velho no jardim-de-infância. De vez em quando, levam Telminha de novo pra Belo Horizonte. Quase sempre, vai a mãe sozinha, e a vida em casa muda. A vó é quem fica zelando deles, mas não tem muita paciência, anda perrengue e faz uma comida esquisita. Cozinha só com toicinho, quem é que agüenta cariru amargoso todo santo dia, e o fogão de lenha vive cheio de tachos encarvoados que ela usa pra fazer sabão de soda. Quando a avó fica braba, o pai bota empregada e aí é que fica pior. Tem umas muito caprichosas, enceram tudo e proíbem de brincar dentro de casa, até de entrar pela porta da sala. Mas o mais velho e a entre-ele-e-a-piquitita se esquecem de tudo, quando a mãe volta de viagem. Telminha volta sempre rindo, uma novidade na boca e uma lembrancinha na mala de viagem. De uma vez, trouxe bombom sonho-de-valsa e maçã embrulhada em papel azul, fininho, até para a menorzinha, a que não anda ainda. Dessa vez, contou que Geraldinha está de cadeira de rodas. Tiveram que cortar-lhe a outra perna: a doença tinha andado.

De uns tempos pra cá, já não vão a Belo Horizonte. Que bom que fossem, sempre podia dar um jeito de ir também. Podia tirar retrato de novo com ela no parque, andar de canoa, ir ver treino de futebol no campo do América, assistir televisão, andar de lotação e ônibus elétrico, descer e subir de elevador. Mas não se fala em viagem mais. O pai e a mãe não dormem direito, círculos roxos em roda dos olhos, a menina chora quase toda noite. Uma vez, ele também acorda e, se pudesse, tinha passado toda a dor que ela sentia para si mesmo, que o dó era demais. Se pudesse... Mas não pode, fica é chorando baixinho, escondido, as lágrimas enxugando no lençol, pra ninguém ver.

A única vez que chorou na frente de todo mundo foi no dia em que a viu pela última vez. Ele já no grupo escolar, no primeiro ano, a professora bonita veio buscá-lo no recreio. Foram pra casa antes de a aula terminar. Não lhe falaram o que era, mas o coração parece sabia. Em cima da mesa de jantar, na copa, a menina morta, algodão nos ouvidos e nos buracos do nariz. Um travesseiro debaixo da cabeça, vestido de anjo azul brilhante, as penas da asa branca um pouco encardidas, o diadema puxando os cabelos pra trás das orelhas, os castiçais queimando nos cantos da mesa. O choro da parentada.

O seu choro arrebentou de dentro e, parecia, era para a vida toda. O primeiro encontro com o irremediável. A mão esquerda da professora acariciando sua cabeça, o seu rosto, a direita assoando o nariz com um lenço bordado, que ela não chorava direito, uma lágrima em cada olho ia borrocando a pintura. Bom o carinho dela enquanto chorava, melhor ainda sentir o corpo quente, dentro da saia apertada, o cheiro de batom e ruge.

Não viu o enterro, não deixaram. Mais tarde, quando já entendia as coisas, a mãe mostrava um cacho de cabelo ondulado, escondido num envelope de seda. A um copiador de retratos encomendaram pintasse um quadro dela, de meio corpo, rindo assim acanhadinha, os dentinhos da frente estufando o beicinho, que era pra ninguém nunca mais se esquecer dela.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 23/03/2015
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