SOB A REDOMA DO GLOBO DE NEVE
O chão estava gélido, podia sentir isso, e mesmo de olhos fechados sabia que não estava mais na minha casa. Apertei o chão com toda a minha força, e ele se liquefez por entre os meus dedos. Ainda me lembro daquela sensação.
Fria.
Apertei os olhos tentando me livrar daquele sopro gelado, o vento assoviava sobre a minha cabeça. Puxei o cobertor para me proteger, mas ele não se encontrava mais lá, foi aí que percebi que algo muito estranho estava acontecendo. Abri os olhos vagarosamente, quase que como despertando de um sono profundo, tudo permanecia escuro, com exceção de uma estranha luminosidade que clareava...O chão?
Mantive-me de joelho. Todo o solo a vista brilhava como um imenso cubo de gelo.
Neve.
Fazia quanto tempo que não me deparava com a neve?
O vento soprou uivando sobre o ambiente em um eco profundo. Meu corpo tremeu por completo e finalmente percebi que estava vestindo apenas farrapos. Pedaços de tecidos sujos cobriam o meu corpo de forma pouco eficiente, meus pés estavam nus em contato com aquela imensidão gelada.
Ao olhar para cima observei de onde vinha toda aquela luminosidade, um corpo oval dançava no céu, mas por alguma razão não parecia ser a lua, não ali, não naquele local. No horizonte se destacava uma imensidão vazia, apenas o branco do solo contrastando com a escuridão do céu. Pouco a pouco meus olhos se acostumaram ao ambiente e pude, por fim, ver algo brotando do solo. Não posso dizer com certeza que aquilo já estava ali da primeira vez que olhei. Bem a minha direita podia enxergar uma pequena cabana coberta de neve com um grande pinheiro ao seu lado. Corri desconsertadamente em direção a casa, mas algo que não me parece explicável, criava uma resistência em mim, de tal forma, que parecia me movimentar sem está saindo do lugar.
Corri.
Corri, como se minha vida dependesse daquilo.
Aos poucos a cabana ganhou forma. Possuía apenas uma porta e uma pequena janela, minha mais nova esperança surgiu em forma de uma luz fraca que brotava do seu interior.
Corri até por fim alcançar a porta.
De lá admirei o pinheiro coberto de neve, o único habitante vivo que tinha encontrado até o momento. A cabana era ainda menor do que parecia anteriormente, de modo que teria que me abaixar para passar pela porta. O vento gelado soprou e não me restou outra opção que não fosse entrar no recinto.
Toquei a porta entreaberta.
Ela rangeu, quase que numa reclamação, e abriu.
Percebi que a luminosidade vinha de um antigo lampião a óleo que estava sobre uma mesinha de madeira.
- Olá? – perguntei.
Ninguém respondeu.
Adentrei na casa a passos curtos.
Não havia ninguém.
A casa não possuía nenhuma mobília além de uma cama – desarrumada - e um pequeno fogão de lenha, mas foi algo na parede que chamou minha atenção.
Um relógio.
Talvez fosse o fato de parecer muito moderno para aquela cabana que fez com que tivesse minha atenção presa àquela peça.
Não... Não era isso.
O objeto possuía uma peculiaridade que me deixou fascinado.
Ele girava no sentido anti-horário. Girava para trás.
Talvez fosse um simples defeito, não sei. Dizem que os relógios analógicos são instrumentos tão complicados, talvez fosse isso. Mas tomado por um súbito sentimento de curiosidade, resolvi tocá-lo.
Meus dedos encontraram a tela de vidro gelada e por um momento senti a terra inteira tremer.
Terremoto?
As oscilações no chão ficaram mais fortes, de tal forma que não conseguia mais permanecer em pé. Olhei para o relógio. Ele começou a girar ainda mais rápido.
Para trás.
Arrastei-me para fora da cabana, e ao alcançar a porta, ouvi o barulho do contador se desprendendo da parede e se estraçalhando no chão.
Minhas mãos tocavam o solo, agora fora da casa, porém, todo o chão parecia está mais líquido.
Estava derretendo.
Olhei para casinha e vi seu telhado dissolver, desaparecendo no meio de toda aquela neve. O clarão no céu tornou-se mais forte, então pude ver o que até então não tinha percebido. Existia algo sob as nuvens, que separava a terra do céu. Uma camada transparente.
Uma redoma.
Não cheguei a questionar-me o quanto impossível aquilo parecia ser, pois os tremores aumentaram, assim como a luz que refletia ao tocar a camada invisível. Não existia mais frio, a neve sob meus joelhos já havia derretido, assim como tudo que estava aparente. Meus olhos incrédulos se destacaram ao perceber que agora a redoma estava rachando. Um enorme trinco percorria um caminho qualquer cortando a camada de ponta a ponta.
E quando eu gritei.
A redoma quebrou.
***
Acordei com a luminosidade em meus olhos. Não existia neve. Nem tão pouco a redoma. Apenas a janela do meu quarto irradiando a luz do sol.
- Bom dia, querido – disse minha mãe afastando as cortinas.
- Mãe?
- Feliz Natal, querido.
- O que você tá fazendo aqui?
- Já são 8 horas, meu filho, achei melhor te acordar. Estou preparando a ceia de Natal para a gente.
- 8 horas? – Eu ainda estava vivendo aquela ficção que se passou em meu sonho.
- Ah! Esse ano vai ser tão triste. Primeiro ano desde que seu pai se foi.
Minha mãe me olhava com os olhos marejados e eu não entendia como podia ter dormido por tanto tempo.
- Estou atrasado, mãe.
- Atrasado? Mas ninguém trabalha no dia de Natal.
- Eu trabalho – disse desferindo meu mau humor matinal. – Tenho que acompanhar a revisão da minha crônica de Natal no jornal. Passei a noite toda trabalhando nisso.
- E você não pode enviar isso pelo computador, meu filho?
- Eu enviei, mãe. Vou acompanhar a revisão, já falei, me deixe em paz.
- Para que esse mau humor, heim? É Natal.
- Já basta, já tive minha overdose de Natal por hoje. Tive uns sonhos bestas.
- Que tipo de sonho? Às vezes sonhos são avisos, meu filho. Você não pode dizer que é besteira. Teve uma amiga da sua tia que um dia sonhou com...
Lancei meu melhor olhar cético.
- Mãe...Me poupe das suas superstições.
- Mas estou falando sério. Com o que você sonhou?
- Será que a senhora poderia me deixar sozinho para eu me trocar?
- Mas que besteira é essa agora? Eu te carreguei por nove meses na barriga, para você ficar com uma ingratidão dessas?
- Sermão uma hora dessa não, por favor, mãe.
- Tá bom, desça e tome café pelo menos.
- Certo, agora a senhora pode ir.
Lembro-me do olhar que ela me lançou naquele momento antes de sair do quarto. Olhos de desaprovação. Minha mãe tinha esse defeito, ela não percebia que agora eu era um homem adulto e ocupado.
Arrumei-me o mais rápido que pude e sai de fininho, passei direto pela cozinha, não podia perder mais tempo, eu comeria qualquer coisa na rua, isso não era problema para mim. Apesar do belo sol, a manhã estava fria, então corri para pegar o primeiro taxi que encontrasse em direção ao trabalho.
Meu celular tocou e eu atendi prontamente. Meu redator, lembrando-me que eu estava completamente atrasado.
O táxi parou em frente ao escritório.
No momento falava no celular com o meu chefe, o dono do jornal no qual eu publicava minhas crônicas. Lembro que ele me passava todos os dados de vendas do último mês, como se por algum milagre eu pudesse decorar todos aqueles números.
Paguei o motorista e praticamente pulei do carro, indo em direção ao escritório.
- Senhor – gritou o motorista.
Eu me virei e olhei para ele.
- O senhor esqueceu sua pasta no carro.
Não me surpreendi, geralmente estava esquecendo as coisas por aí. Voltei ao carro, peguei a pasta, agradeci ao motorista, e quando me virei para correr para a revisão me choquei com alguém no meio da calçada.
Um senhor, de oitenta e poucos anos, exibia cabelos e barba brancas.
Tentei segurar o idoso para que ele não caísse no chão, mas ele estava mais preocupado em tentar segurar um objeto oval que escorregava das suas mãos.
Um globo de neve.
Vi o objeto escorregar das suas mãos, e juro que tudo parecia acontecer em câmera lenta. Os flocos do globo se agitavam em protesto e o senhor, com a face preocupada, tentava, inutilmente, segurá-lo.
O globo tocou o chão, e se dividiu em milhares de pedaços.
Imediatamente me lembrei do sonho que tive, e da redoma sobre minha cabeça.
O tempo voltou a correr em seu curso natural e o velho, ajoelhado, juntava os cacos no chão. Tentei ergue-lo pelo braço.
- Desculpe-me, senhor. Eu não tinha o visto, não queria quebrar seu brinquedo.
- Não era meu – se resumiu a responder. Pude perceber que sua voz falhava e que possivelmente segurava um choro.
- Eu posso te reembolsar pelo prejuízo.
- Não! Você não pode!
Observando-me naquela situação adversa, fiz o que eu faria eventualmente, tirei uma nota de cem reais do bolso e estendi para o homem.
- Isso deve cobrir suas despesas e os transtornos.
Ele olhou para nota, incrédulo. Por um momento pensei que ele nunca tivesse visto uma nota tão alta, e que fosse se agarrar a ela como a uma bóia no meio do oceano.
Não foi o que aconteceu.
- Eu não quero o seu dinheiro!
- O Senhor quer que eu compre outro globo para você? Naquela lojinha têm vários, até bem mais bonitos que esse.
- Você não entende, esse globo era...insubstituível.
Foi ai que entendi que a questão não era tão simples como eu imaginava. Ajoelhei-me ao seu lado e ajudei a catar os cacos. Milhares deles. Entregando-os por fim, aquele velho senhor.
Ele apertou os cacos sem se importar com os cortes.
- Venha, sente-se aqui comigo – eu o direcionei a um banco em uma parada de ônibus. A rua estava praticamente vazia. Durante muito tempo me perguntei como pude esbarrar na única pessoa que estava na calçada, mas como diria minha mãe: “as coisas acontecem quando tem que acontecer”.
Ele sentou-se ao meu lado.
- De quem era esse globo? – perguntei.
- Da minha filha – ele respondeu depois de um longo silêncio.
- Eu posso comprar outro globo para ela – disse tentando animá-lo.
- Você pode comprar esse globo? – ele me mostrou os cacos.
- Esse? Infelizmente isso eu não posso fazer.
- Pois é.
- Mas porque teria que ser esse globo? Não poderia ser outro igual a esse? Acredito que ela não perceberia a diferença.
- Ela realmente não perceberia – disse o velho com os olhos marejados -, mas eu perceberia.
Engoli a seco, por ter demorado tanto tempo para perceber, mas por fim, perguntei:
- Ela...Sua filha... Está...Viva?
Ele balançou a cabeça negativamente.
Senti vontade de abraçá-lo naquela hora, de dizer que tudo ficaria bem, mas como eu poderia saber?
- Me desculpe, eu não sabia, lamento muito.
- Não precisa lamentar, já faz muito tempo, há exatos 40 anos.
- No Natal? – perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Passamos a véspera do Natal juntos no hospital, ela estava feliz, parecia que ia melhorar apesar dos médicos dizerem o contrário. Eu dei esse globo a ela nesse dia, e no outro, ela não acordou mais.
Estava atônito, não poderia proferir nenhuma palavra, pois nada que eu dissesse poderia sanar aquela dor.
- Desculpe, eu estava com pressa, não queria esbarrar no senhor.
- Pressa? Use seu tempo para as coisas que realmente importam, pois ele não volta, não volta nunca. Arrependo-me por não ter passado mais tempo com ela.
- O senhor estava indo... Vê-la?
- Desde quando aconteceu, passei a dedicar meu tempo ao que tinha de mais importante. Durante todos esses 40 anos eu levei esse globo no Natal para ela, imaginando aquele último sorriso.
O velho olhou no relógio da igreja a nossa frente.
- Desculpe, eu tenho que ir – disse ele estendendo os cacos do globo para mim.
Eu peguei desconcertado.
- Você não vai levar o globo? – perguntei.
- Não – respondeu ele – até hoje me prendi a esse objeto como se ele fosse o motivo da minha visita, mas ele não é.
- Não?
- Não. A minha presença é o que importa.
Dizendo isso, ele me deixou. Fiquei olhando-o desaparecer por entre as ruas. Permaneci sentado analisando aquele globo quebrado durante vários minutos, impressionado com tudo que acabara de escutar.
Abri minha pasta e coloquei os fragmentos de vidro dentro. Verifiquei o relógio e vi que eu estava atrasado.
Corri.
Corri o mais rápido que pude.
Para casa.
Bati na porta como um desesperado.
Minha mãe apareceu.
Eu a abracei com todas as minhas forças.
- Por que isso, meu filho? – perguntou ela entre meus braços.
- Feliz Natal, mãe.