Sonhos de Vareniclina- Kurt Cobain
Admito logo de início que sou uma adicta e que este não é um discurso tragicômico para arrebanhar simpatias alheias de companheiros anônimos. De dezessete a quarenta anos, fumei vinte cigarros por dia mas tal fato não configura minha atual patologia. Há exatas quatro semanas estou tomando Vareniclina e tenho tido sonhos anormais. Antes não os chamava anormais, mas, convencida por uma bula longuíssima e uma abstinência nicotínica pouco dolorosa, vejo-os como simples danos colaterais. Meu cérebro tem a fibra de uma erva daninha, tem hábitos e raízes arraigadas no cerne da minha mandíbula. Aconselharam-me a fazer um diário de tais manifestações oníricas e eu, no canto da sala, duvido que consiga relembrá-los. Tenho a memória curta, impotente e inconsequente, não posso dar asas aos hipopótamos.
Há um que ainda arde como ferida infeccionada e é o murmúrio de uma guitarra oca e da voz rouca de meu interlocutor já finado. Vejo-o de dentro dos olhos azuis de uma criatura cheia de tentáculos que me abriga no próprio ventre como cria ou refeição fresca. De seu mundo hierático, midiático, miosótico, ele me chama para entrar no ônibus azul, the blue bus is calling us, diz que o nirvana é aquele mundo coloidal, mundo que já me engole, velhos e cansados ossos, a gordura que se acumula na cintura. E me deixo levar por suspeitas de estupro e alívio antiácido. Framboesas. Vejo framboesas na xícara de chá que tomamos sentados numa mesa de carvalho. Ele me mostra calado, sua coleção de codornizes. As espingardas limpas, o som ecoando dentro do cubículo-nada. O mundo é um espetáculo indigno e todos os miasmas sempre se misturam. Já não o vejo, começo então a dizer-lhe do quanto sua música me facilita a vida e me mata um pouco o conforto de sentir-me triste. Não quero me suicidar. Outra vez.
Súbito, ele me oferece um cigarro saindo rapidamente do banheiro. Acendo o trago, engulo a fumaça com a avidez ancestral da hiena. E não sinto nada. Penso: remédio filha da puta e vontade escabrosa de cumprir promessa que me fizeram parar de fumar! Ele, Kurt, ri da minha cara ostentando um ar apalermado e lunático e, com gestos ostensivos, me aponta a concha de aspecto rosado. Gelatinosas, minhas pernas sem músculos se fundem à geleia da existência e sou nem ponto, nem vírgula.
Tenho tidos tais sonhos diariamente, com ou sem nicotina. Dizem que velhos hábitos são ervas. Daninhas. Como meu cérebro. E viva a saúde dos enfermos! Ninguém há de conhecer estes sonhos repetidos. A larva que me expeliu, entrementes, agora, enquanto me digere, diz que devo esquecer tais delírios virulentos. Continuo abstêmia, como um pote de barro malfeito.