723-O DIA DE TIRAR DENTES- Autobiográfico

Toniquinho era um dos mais responsáveis da classe. Na classe do primeiro ano da escola primária, tudo era novo para ele, como para todos seus colegas. Por isso, prestava atenção a todas as palavras que a professora dizia. Sentado à pequena mesa, defronte para Luiz e tendo ao lado direito Manoel e à esquerda, Jairo, escutava o que a professora, Dona Marocas, dizia. Não perdia uma palavra.

— Amanhã é feriado, não vamos ter aula. É dia de Tiradentes. Mas vamos ter uma comemoração e quero todos aqui, ás oito horas da manhã. Sem falta.

Toniquinho gelou. Aquela palavra lembrou-lhe a cadeira de dentista do Dr. Nelson, com a broca roendo os dentes, a dor, o sangue, um terror...

Nada disse aos colegas. Procurou não demonstrar o medo. Engoliu em seco e ficou pensando. Daquele momento em diante, nada mais ouviu do que a professora dizia tamanho era o pavor que lhe infundia o dentista, tratar de cáries e arrancar dentes.

Também nada disse em casa. Passou o resto do dia remoendo o que ouvira e o que deveria fazer no dia seguinte. Tomou a decisão antes de deitar-se:

Não vou à escola amanhã. E se o Dr. Nelson estiver lá? E leva a gente pro seu gabinete. Não vou, não.

No dia seguinte, a mãe levantou-se e foi ao quarto dos dois filhos, a fim de acordá-los para o café da manhã. Arthur estava ferrado no sono. Mas Toniquinho não estava na casa, os lençóis desarrumados, o cobertor caido por um dos lados da cama.

Já levantou, deve estar na oficina do pai, pensou Dona Maria. Quando o café estava à mesa, gritou da porta da cozinha, para o marido e o filho:

—Pedro! Tuniquinho! Venham tomar café!

O marido chegou rápido, dizendo:

—O Tuniquinho não está lá na oficina, não.

— Ara, ele já levantou. Será que tá no quintal Vai tomando o café que eu vou procurar ele.

Dona Maria foi ao quintal, e nada de ver o filho. Chamou em voz alta e nada de resposta. Entrou no galinheiro, procurou até onde não poderia estar o filho, no telheiro de lenhas. Voltou ao quintal e, sob a laranjeira, continuando os chamados em voz alta; olhou para os altos galhos, com as laranjas ainda verdes, e nada de ver o garoto.

Onde é que esse meninota escondido? – pensou.

Ela voltou para a cozinha, onde o marido e Arthurzinho, o filho mais novo, tomavam café.

— O Tuniquinho sumiu! — Ela disse, com a voz denotando certa aflição. — Não está na oficina, nem no quintal, nem no galinheiro.

O pai levantou-se, dizendo:

—Só pode estar dentro de casa. Vou procurar.

Passando pela porta da rua, verificou que estava trancada. Foi no quarto das crianças, abriu as portas do pequeno armário de roupas, foi para o quarto do casal, olhou também dentro do guarda roupas. Nada de achar o menino. Já preocupado, foi ao quintal, até a latrina, cuja porta estava fechada, trancada com um gancho de arame, fora do alcance das crianças. Deu uma volta ao redor da pequena construção, não fosse o garoto estar fazendo suas necessidades atrás da latrina, pensou.

Ninguém.

Voltou para dentro da casa, pensando. Só pode estar escondido. De brincadeira ou por algum motivo.

De novo no quarto dos meninos. Levantou o cobertor, que se arrastava pelo chão, quase caindo da cama de Tuniquinho. Então ouviu um ruído. Abaixou-se e deu de cara com o rosto do garoto, os olhos muito aberto, espantados.

— Que é isso, moleque! Que tá fazendo aí? Vamos, sai já daí.

Enquanto falava, puxava o garoto pela mão.

— Tá querendo matar sua mãe de susto? Que é que cê tava fazendo lá embaixo

Toniquinho, de pé, tremia que nem varas verdes.

— Tava escondido.

— Escondendo de que? Que bicho te deu na cabeça?

— É que... é que hoje... num quero ir na escola.

— Mas hoje não tem aula. É feriado. Dia de Tiradentes.

— É por causa disso. A professora disse que é o dia de tirar dentes.

O pai deu uma gargalhada, enquanto a mãe abraçava o filho.

— É dia de Tiradentes. Foi um homem famoso aqui em Minas, morreu enforcado. A professora não explicou?

— Pois é, ela disse que todos os meninos e meninas do grupo escolar tinham de ir lá hoje, às oito horas, porque é dia de tirar dentes.

— Mas que tirar dentes que nada. Deve ter alguma comemoração.

Apesar do esclarecimento do pai e dos carinhos da mãe, levou bem mais de meia hora para ambos tirarem o medo do garoto. O pai, vendo que o filho ainda estava desconfiado, disse:

— Pois bem, vou levá-lo à escola e explicar para a professora que todos seus dentes são bons, que não tem nenhuma carie, que não é preciso tirar dentes de sua boca.

E lá se foram os dois, de mãos dadas, descendo pela rua empoeirada, rumo à escola e à celebração do dia de tirar dentes, digo, do dia de Tiradentes.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 1 de abril de 2012

Conto # 722 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/03/2015
Reeditado em 22/03/2015
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