721-MULTA NA RODOVIA - Político e polícial

Altamirando Lopes não era político, por isso podia se dar ao desplante de ser cem por cento honesto mesmo sendo prefeito de Itaguará e sofrendo pressões corruptoras por todos os lados.

Eram os chamados “anos de chumbo”, do governo militar instaurado em 1964, quando poucos cidadãos de honra e competência se atreviam a candidatar-se a qualquer posto eletivo, devido ao verdadeiro crivo que sofriam das autoridades fardadas. Mas Altamirando Lopes, dinâmico industrial, bom administrador, bem de vida, que nunca pensara em exercer um cargo publico, viu-se, por uma série de circunstâncias, eleito prefeito da cidade.

Era pontualíssimo nos horários e rigoroso ao extremo com os deveres e obrigações assumidos. Desde os primeiros dias de sua gestão como prefeito, fez questão de mostrar o quão rigoroso era: chegava à prefeitura exatamente às oito da manhã e cumprimentava todos os funcionários antes de entrar no seu gabinete. Funcionário que se atrasasse devia, antes de marcar o ponto, ir entrevistar-se com “seu” Altamirando. Na primeira vez, porque na segunda já recebia uma admoestação por escrito e na terceira estava na rua. Sem apelação.

Durante sua gestão foi abordado inúmeras vezes por pessoas que sugeriam “prêmios” e “bônus” por esta ou aquela facilidade. Mas ao menor sinal de proposta indecorosa, punha o cidadão para correr, falando com todos os erres e esses, o que pensava do proposto. Com isso, gerou inimigos, é claro. Mas conquistou também muitas amizades.

Tinha orgulho de ser recebido em qualquer secretaria estadual, na capital, e até mesmo pelo governador, quando este estava no palácio, em função do seu dinamismo e de sua honestidade. E granjeou também alta estima e muitos amigos na área militar. A cidade foi visitada diversas vezes por comissões militares que não racionavam elogios ao prefeito Altamirando.

Em uma das vezes em que foi visitado por uma comissão de militares, foi agraciado com uma carteira de identidade do Exército. Nada de mais: uma carteira era comum, para “elemento civil” (como disse o coronel Gualberto) mas com as armas do exército em destaque. Altamirando a colocou na carteira, junto com outros cartões e passou a usá-la com naturalidade.

O prefeito ia constantemente à capital. Ele mesmo dirigindo o veículo da prefeitura, uma potente e veloz (para os padrões da época) Veraneio-Chevrolet. Sempre se fazia acompanhar de um ou outro funcionário da prefeitura, para companhia Oe para levar documentos e informações técnicas, próprias de cada departamento.

Gostava de carros e dirigia com perícia, sem se exceder. Mas, numa dessas viagens, quando retornava, descuidou-se num trecho de rodovia bem asfaltada (coisa rara) e acelerou além do limite permitido.

Lá em cima, no alto da reta, um patrulha rodoviária fez com que parasse.

—Boa tarde, senhor. — disse o guarda, amistosamente. — O senhor ia um pouco além do limite. Não é mesmo?

Altamirando não se intimidou nem procurou se escusar:

— É verdade, seu guarda, ia a uns 100 por hora. Aqui a estrada é muito boa e me descuidei

— Vou ter que multá-lo. — disse o guarda.

— Pois então, faça o que é de seu dever, respondeu Altamirando.

O guarda sacou do talão de multas e foi até a frente do veículo, anotar a placa. Deus uma volta ao redor, para ver se estava em ordem. Escreveu alguma coisa no talão de multas e, com a prancheta na mão, voltou e disse:

— Seus documentos, por favor.

Altamirando sacou do porta-luvas a carteira dom os documentos do carro. Passou ao guarda, que começou a examinar os papéis. Do bolso da camisa, o prefeito sacou a carteira de identidade (aquela do Exercito Brasileiro) e passou para o guarda.

Ao pegar na carteira, o guarda mudou completamente de atitude. Mostrando evidente surpresa, olhou a carteira, para Altamirando, perfilou-se e disse:

— Seu Major! O senhor me desculpe! O major devia ter-se identificado primeiro.

Altamirando também se surpreendeu, mas, de raciocínio rápido, pensou:

Ele deve estar me confundindo com outra pessoa. Na carteira não tem nenhuma patente.

Antes que pudesse responder, o guarda prosseguiu:

— Vou inutilizar o talonário de multa, seu Major! Não tem multa nem nada. Pode seguir.

— Mas... — começou Altamirando a dizer qualquer coisa. Foi interrompido pelo guarda:

— O major me desculpe mais uma vez. Vou cancelar a multa. Veja. — E assim dizendo, riscou a guia onde já havia colocado alguns dados. — Pode seguir viajem. Me desculpa, seu Major.

Altamirando ficou sem saber o que fazer.

Se falo que não sou major, ele não vai acreditar, ou pensar que eu estou enganando-o. Vai se sentir desrespeitado. Melhor deixar coimo está.

Ligou o carro e saiu para a rodovia. Alguns metros adiante, longe da vista (e da audição) do guarda, Mário, o funcionário que estava ao seu lado, deu uma risada.

— Então, seu Major! “Pois, não seu Major!” Essa é boa!

Altamirando também achou graça, porém disse ao funcionário:

— Isto fica só entre nós dois. Por favor, não conte nada a ninguém. .

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Em uma reunião festiva, na prefeitura, dias após, Mário, que gozava da amizade do prefeito,

cumprimentou Altamirando:

— Bem vindo à festa, seu Major!

Altamirando fechou o cenho. Chamou Mário de lado e lhe cochichou:

— Se você contar a alguém o que sucedeu ou se me chamar de major mais uma vez, está no olho da rua!

Só muitos anos depois, quando Altamirando já deixara a prefeitura, é que fiquei sabendo da história, contada pelo seu filho, que não me pediu segredo.

ANTONIO GOBBO –

Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2012

Conto # 721 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/03/2015
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