720-MUSICA PARA SONHAR - Romance impossível

Emilio vive de recordações. Cada livro, cada disco, cada objeto em sua casa traz-lhe à mente a lembrança de pessoas, fatos, encontros ou desencontros em sua vida. Aos oitenta e dois anos, a memória lúcida, as recordações são como que revivência das experiências passadas.

Gosta de ouvir música. Tem uma boa coleção de discos de vinil, antes chamados respeitosamente de long-plays ou elepês, (de LP) e hoje mencionados raramente como bolachas de vinil. Tem também duas centenas de K-7, ou fitas-cassetes de músicas, além, é claro, de prateleiras cheias de CDs.

Ouve o que lhe apraz, no sistema que lhe convém, no aparelho três-em-um: Toca fitas, DC player e toca-discos.

Ao ouvir os acordes das músicas no LP Musica para uma Noite de Verão, sua memória voa para mais de cincoenta anos atrás, recordando da estranha trajetória deste disco, desde a loja até SUS mãos, passando por Benito e por Leonor, seus amigos de antanho.

Era verão de 1960 (sim, e que verão quente!) na pequena cidade onde residia e trabalhava. Frequentava a loja A Musical, onde o estoque de discos era reforçado a cda seis meses, pois a freguesia era pequena e poucos os títulos disponíveis. Gostava de música romântica, orquestrações de Mantovani, Ray Conniff, George Melacrino, Billy Vaughn, André Kostelanetz, Arthur Fiedler; agradavam-lhe também gravações das bandas americanas de Glenn Miller, Ralph Flanagan, Ray Anthony, Sauter-Finegan, entre outras.

Encontrava-se frequentemente com os outros clientes da loja: Zé Carlos, bancário como ele, funcionário de outro banco; doutor Alvarenga, advogado; Pérsio, que, como Emilio, gostava das orquestras; Maria Emília, a jovem esposa de Valério, mecânico de fama na cidade. E outros.

As recordações levam Emilio exatamente à uma tarde de sábado, em que ouvia algumas faixas dos LPs, na única loja da cidade que vendia discos.. Estava na dúvida se adquiria um LP da Orquestra Boston-Pops, regida pelo maestro Arthur Fiedler, ou outro de Billy Vaughn, uma orquestra que estava surgindo naquela época. Também estavam na loja Pérsio e Maria Emilia, todos manuseando LPs. Antes que decidisse Emilio foi antecipado por Pérsio:

— Fico com esse que está tocando.

Era “Musica para uma noite de verão”, a que agora ouvia.

Maria Emilia, entre os dois, olhou para a capa do LP — a foto chamava a atenção, naquela época de recato e pudor: uma esbelta morena, de pé, encostada em uma coluna grega, trajando apenas uma camisola diáfana, em pose meditativa. Uma pose sensual, sem dúvida, que, aliás, nada tinha a ver com as músicas semi-clássicas do LP.

— Hummmmm... Gostaria de ouvir este elepê. — Ela disse, sorrindo, para Pérsio.

Pérsio respondeu o olhar, recebeu a sacola com o LP, pagou-o, retirou o disco da sacola, escreveu alguma coisa no verso, colocou-o de novo na sacola e o entregou a Maria Emilia, dizendo:

— Pois pode ouvi-lo quando quiser.

Ela ficou meio embaraçada, o que não impediu de receber a sacola.

— Mas... não sei se...

—É um presente que lhe faço. Por favor, aceite. — Disse Pérsio, ao mesmo tempo em que tirou a caneta do bolso e escreveu alguma coisa na capa do LP. .

— Bem... Obrigada...Muito obrigada.

Apertou a mão de Pérsio e saiu da loja.

Emilio assistiu tudo sem falar nada, tentou escolher outro disco, mas desistiu, e saiu da loja com Persio.

— Cê ficou doido, cara? Sabe que o marido dela, é muito ciumento... e metido a valentão?

— Vale a pena, não vale? — disse Pérsio. — Veja lá se não vale a pena.

Emilio olhou na direção que o amigo apontava. Maria Emilia atravessava a praça central, caminhando por entre os canteiros e sob as sombras das altas árvores. O brilho de sua cabeleira loura destacava-se quando passava nas áreas ensolaradas. Requebrava, fazendo balançar para um lado e para o outro a saia rodada que chegava dos joelhos.

Maria Emilia era uma garota bonitinha, antes de se casar. Nada de especial. Mas, depois de casada, desenvolvera-se e tornara-se mais elegante e charmosa, chamando a atenção quando passava (geralmente sozinha) pela praça.

Antes de namorar, noivar e casar-se com Valério, flertara com os moços da cidade. Pérsio, Benito e até ele, Emilio, foram alvos de seus olhares insinuantes. Aliás, com Pérsio havia sim, agora se lembrava, namorado por algum tempo. Namoro de brincadeira, como Pérsio disse então, mas Emilio julgava que alguma coisa mais havia rolado entre os dois.

— Quando o marido souber, vai te fazer picadinho.

Valério, antes de se casar, fizera parte da turma de Emilio, Pérsio e outros. Gostava de beber, era muito forte e se envolva facilmente em discussões nas quais, se não fosse segurado pelos amigos, terminariam em pancadarias.

Depois de casado, se afastara, naturalmente da turma de solteiros. Mas de vez em quando, ouvia-se falar de discussões e entreveros n oficina mecânica do pai,onde trabalhava.

— Você exagerou, Pérsio. Te prepara! — finalizou Emilio, antes de se despedirem, naquela tarde de verão forte.

Emilio se lembrou quando, na manhã de domingo, estando para entrar na agencia do banco, viu Maria Emilia que lhe acenava sob um cinamomo, como que o chamando. Encaminhou-se para o local e:

— Oi, Emilio, preciso de um favor.

— O que quiser, respondeu Emílio.

— Preciso me livrar deste long-play. Se não o Valério me mata.

Estendeu a mesma sacola em que o disco havia sido colocado, na loja A Musical. Parecia apavorada, os olhos vermelhos e um arranhão no rosto.

— Guarde para mim. E não fale prá ninguém.

— Tá bom, pode confiar. Mas que é isso no seu rosto?

— Não é nada. Agora tenho de voltar. Muito obrigada. Deus lhe Pague.

Quase correndo, se afastou da sombra da árvore, em direção à sua casa.

Emilio se viu plantado na calçada, com a sacola na mão. Sabia o que continha, e procurava adivinhar que estaria ocorrendo no lar de Maria Emilia e Valério.

Ficou tudo em conjecturas para ele. Nada falou para Pérsio e guardou a sacola em lugar seguro, no seu guarda roupa, debaixo de caixas de sapatos.

Nunca mais encontrou Maria Emilia na loja A Musical. Aliás, nos dois anos posteriores em que viveu na cidade, raramente a viu, e nas poucas vezes, em companhia do marido.

Quando ia se mudar para outra cidade, Emilio pensou em procurar Maria Emilia pra saber o que fazer da sacola.

Melhor não. Se ela não o procurou, não sou eu quem irei procurá-la.

Levou consigo a sacola. Não abriu, pois sabia o que continha.

Na nova residência, ao desempacotar as caixas com os objetos variados, abriu, finalmente, a sacola com o LP.

Era mesmo “Música para uma Noite de Verão”, o mesmo LP que Pérsio dera à Maria Emilia naquela tarde quente, já um pouco longe no tempo e no espaço. A capa estava meio estragada, parece que riscada ou arranhada. Um sinal de rasgão no canto superior direito. Tirou o disco. Olhou de um lado e de outro. Estava aparentemente integro.

Olhou mais uma vez a capa. Pelo lado de trás, havia mais arranhões e a parte rasgada, no canto. Parece que tinha havido uma tentativa de arrancar parte da capa. Mas o papelão, meio dilacerado, ainda estava preso.

Emilio alisou a parte dilacerada, colocando o papelão no lugar. Uma mensagem estava escrita. Entre riscos e rasgões, pode ler:

Para M.E. com beijos carinhosos do P.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 09 de março de 2012.

Conto # 720 da Série 1.OOO HISTÓRIAS.

Contos mais reentes: peça: argobbo@yahoo.com.br

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/03/2015
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