714-MARIA SOARES DE PAULA- Memórias

A manhã fresca convidou-me a uma caminhada pelas ruas de Paraíso. Cortando ruas e cruzando travessas, passei defronte a casa onde residiu dona Marocas, minha professora e verdadeira mestra nos quatro anos do curso primário.

A pequena casa ainda está de pé, agora servindo como escritório comercial. Distante a dois quarteirões da Praça da Matriz, está resistindo bem ao progresso demolidor de velhas residências no centro da cidade. Considerações dispensáveis, pois o que importa, nesta manhã, são as recordações de um tempo perdido para sempre.

Reminiscências ambíguas, ao mesmo tempo doces, nostálgicas e tristes. A doçura de Dona Marocas vinha junto com sua seriedade em classe. Era uma mulher linda aos meus olhos e também pelos padrões da época, o que pode ser constatado na fotografia de formatura da turma do Grupo Escolar Campos do Amaral, do ano de 1946. Era a mais bonita das professoras do grupo, uma beleza séria, pois nunca a vi sorrindo em classe. Aliás, a única vez em que sorriu para mim foi na tarde de minha formatura. (1)

Suave – sim, esta sim era sua característica. Nos gestos, na voz, na maneira de ensinar e até mesmo na aplicação de algum castigo (raro) que aplicava. Fui exemplarmente castigado certa ocasião: ela mandou-me sentar numa carteira na fileira das meninas, atrás da Dirce (minha prima) e de Marlene (a mais bonita da classe). Que castigo ameno!

Teria entre 35 e 40 anos, no período em que foi minha mestra. Reafirmo, era linda: esguia, elegante, rosto muito claro, cabelos sempre armados em “permanente” feita no salão do Pascoal Ianuzzi, o que era moda na época. Caminhava tranqüila pela sala de aula, onde permanecia até mesmo na hora do recreio. A servente da cozinha trazia-lhe um prato da sopa servida aos alunos carentes (a “sopa escolar”, que nunca provei), que ela tomava assentada à sua mesa, calmamente, na maior elegância e educação.

Era casada com Sizenando de Souza e Silva, e não usava o sobrenome do marido, conforme assinatura no meu diploma de grupo e nos boletins de promoção (com as notas do final do ano. Hoje percebo que alguma coisa havia na relação, pois era comum (quase que obrigatório, penso) o uso do sobrenome do marido pela mulher casada.

O marido era jogador profissional de carteado, Passava dias e noites no Clube Paraisense. Meu pai dizia que ele era um parasita, que vivia à custa da mulher; que perdia no jogo o que a mulher ganhava lecionando.

Eu a respeitava muito e gostava dela. Um amor inconsciente entre discípulo e mestre. E ela, acho, gostava de mim. Eu era muito tímido naqueles tempos, e dona Marocas me incentivava (“me botava prá frente”, como se dizia na época) na participação nas apresentações no auditório do grupo escolar (2), na formação e direção do Clube de Leitura Monteiro Lobato (3), e principalmente no final do curso: fui escolhido por ela para ser o orador da turma. Me ajudou na redação do pequeno discurso e na oratória. Naquele final de ano (1946) fui à sua casa diversas tardes para ensaiar a leitura do discurso.

A mesma casa que revi em meu passeio matinal.

Revejo a foto de formatura. Ela está no canto esquerdo, bonita e elegante. Aí fico pensando: Como é que uma mulher tão bonita, tão simpática e cordial, pegou um apelido tão feio? É feio agora e era mis ainda na ocasião, por Marocas era a intratável e horrorosa mulher de Pafúncio na tiras de quadrinhos.

As lembranças agora se tingem com as cores da tristeza. Depois que recebi o diploma nunca mais vi Dona Marocas. Ela continuou lecionando, mas eu jamais voltei ao Grupo Campos do Amaral, nunca a visitei e sequer me interessei, nos anos seguintes, em saber de seu destino.

Quanta ingratidão!

Soube, pelo Luiz Ferreira, que foi meu colega no grupo, que ela havia se mudado para São Paulo, onde faleceu.

Hoje, me penitencio de tamanha falta. Dona Marocas é minha Mestre Espiritual desde 14 de abril de 2005, quando tive um sonho com ela. (4)

Invoco sua ajuda em minhas necessidades e agradeço em minhas realizações. /Sei que ela esta ao meu lado – me inspirando, quem sabe? Nestas poucas palavras em sua homenagem.

(1)Ver conto # 054 – O que você vai ser quando crescer?

(2)Ver conto # 410 – Minha História Vou Contar.

(3)Ver cron. # 128 – Clube de Leitura Monteiro Lobato

(4)Ver cron. # 075 – Lírios Cor de Rosa (um sonho)

(5)Ver conto # 802 - Dona Marocas e o Quadro Negro

ANTONIO ROQUE GOBBO

S;ao Sebastião do Paraíso, 10.02.2012

Conto # 714 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/03/2015
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