AO DESPERTAR

Ao despertar, não senti o cheiro de café passado no coador de pano que minha mãe faz e que perfuma a casa toda. Não ouvi o ruído da cadeira de balanço em que meu pai todos os dias de manhã fica a balançar-se lendo seu jornal. Levantei e não esbarrei nas parafernálias de esportes radicais que meu irmão deixa esparramadas pelo corredor. Fui até a cozinha, lá visualizei o coador de pano pendurado num prego, como se há dias não fosse usado. Dirigi-me ao quarto do meu irmão e deparei com uma situação inusitada: suas parafernálias estavam todas caprichosamente guardadas na estante e tinha ainda a cama arrumada. Na sala, a cadeira de balanço estava solitariamente parada. Ao sair pela soleira da porta, vi o jornal estranhamente desprezado jogado pela calçada.

Minha cadela Lola me viu e começou a uivar no fundo do quintal. E ela me olhou com estranheza, como querendo me dizer alguma coisa.

Não era um dia como outro.

Fui até a garagem para pegar o meu carro e também não o encontrei. Tudo ficou ainda mais confuso. Pois meu pai era muito responsável, há anos que não renovava a carteira, meu irmão não tinha ainda idade para tirar a sua carta e minha mãe nunca dirigira em sua vida.

Saí andando sem saber para onde, deixei-me levar pelas pernas. Tentava encontrar resposta para aquilo que eu não sabia qual era a pergunta. Enquanto andava me veio à mente um pesadelo, via nele meu irmão com a cabeça toda enfaixada, tentei afastar aquela imagem, sobrepondo uma em que ele me sorria. Durante quase uma hora, andei. Para meu desespero, fui dar de encontro a uma capela mortuária, e em frente a ela fiquei.

Só aí é que me dei conta de que algo trágico havia acontecido. Minha memória havia apagado. Esse lapso só poderia ter-se dado por um grande trauma. De imediato me veio à cabeça minha mãezinha, que havia meses queixava-se de dores, e que de tanta queixa não dávamos mais a ela a devida atenção.

Comecei a chorar, antes que o remorso me corroesse, não querendo acreditar que fora a sua morte a origem do meu trauma. Reconfortei-me ao vê-la saindo de dentro da capela. Por outro lado, tive certeza de que alguém próximo havia falecido. Talvez meu velho pai, que nunca adoentava, ou nunca assumia qualquer tipo de enfermidade. Lembro-me de quando havia pegado uma pneumonia, que para ele não passava de um pequeno resfriado, ou quando enfartou, disse ele ser apenas um pequeno mal-estar. Ó, meu pai! Qual fora a doença que te levara?

Mais uma vez, fui tranqüilizado, pois meu pai saíra também da capela e fora abraçar minha mãe. Essa tranqüilidade se desfez, tão logo a maldita imagem que parecia um pesadelo voltou, agora com detalhes. Via-me levando meu irmão para a faculdade, conversávamos, ele me falava de sua namoradinha, e o quanto estava apaixonado por ela, mas que mesmo assim estava de olho numa vizinha, que havia pouco se mudara. Coisas da idade. Ríamos como duas crianças que acabaram de fazer uma arte qualquer. De repente, apareceu-me um caminhão que forçara a ultrapassagem de um ônibus e eu, não tendo tempo de desviar, fui de encontro a ele.

Está aí, era meu irmãozinho que se fora. Tinha ele ainda tudo para viver, quantas outras paixões como aquela para sentir, quantas vizinhas ainda para espiar, quantas boas risadas ainda daria. Tudo culpa minha, eu havia me distraído ao volante, faltou-me habilidade, se eu tivesse jogado o carro no barranco, meu irmão ainda estaria aqui.

Doía-me a alma, chorava com a maior de todas as dores, desvencilhei-me do chão e parti rumo ao interior da capela. Meus pais ainda estavam abraçados, envolvidos num sentimento mútuo de perda, não me notaram entrar. Fiquei estupefato ao ver meu irmão com a faixa na cabeça, não no caixão, como eu imaginava, mas na cabeceira dele velando um corpo. De início não reconheci o defunto, aproximei-me mais, e mais, o pobre estava desfigurado, para daí identificá-lo, e identificar-me. Meu irmão percebeu minha presença,

levantou seus olhos úmidos, e fitou-me profundamente, com a cabeça indicou ao lado um outro caixão, o dele.

julio damasio
Enviado por julio damasio em 07/06/2007
Reeditado em 08/06/2007
Código do texto: T517244